Artigo

“A IDADE NÃO PERDOA”

Hoje, destacamos o artigo assinado por Miguel Esteves Cardoso, no jornal Público, no dia 23 de abril de 2020:

Este Verão chegarei aos 65 anos de idade, habilitando-me a um horário
especial nos supermercados onde a entrada de jovens é interdita, tenham 14 ou 64 anos.
Esse é o lado bom. O mau é que 65 é a idade a partir do qual já não se pode tomar medicamentos fortes, interessantes, famosos, eficazes. A última vez em que me impuseram esta proibição tinha eu 12 anos. Ainda me lembro: foi horrível. É difícil enfrentar as agruras da vida só com Benuron.
Estou, por isso, numa fase particularmente sensível no que toca à decrepitude. Daí não ter sido com a Primavera na alma que ouvi a Maria João queixar-se que um filme de 1959 era “velho como o caraças — tem mais de 60 anos!”
Já tinha reparado, ao longo dos anos, que sempre que um indivíduo se atrasa a atravessar a rua ou, estando ao volante, se revela menos expedito do que talvez pudesse ser, ela descreve-o como “o raio do velho”.
Não é preciso estudar estes camaradas de muito perto para perceber que são todos mais novos do que eu.
Também o vigor com que ela me assegura “tu não és velho!” vai aumentando de ano para ano, tendo ultimamente atingido a estridência que usam os treinadores para convencer os cães a saltar para um edifício
em chamas.
Depreendo assim que só por via indirecta é que sabemos a idade que realmente nos “dão” os outros.
Experimente dar um livro a um desconhecido que lhe fez um favor. Depois
despeça-se, mas fique por perto. Espere que apareça um amigo dessa pessoa e lhe pergunte quem é que lhe deu aquele livro do Camões.
“Não sei, foi um velho qualquer!”

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