Ainda a propósito do aumento da dívida ao SNS referido esta semana pelo Prof. Pedro Pita Barros no seu Blog…! Há momentos na história em que a persistência no mesmo caminho não só não faz sentido como é, na verdade, uma forma de uma acentuada regressão. Vivemos hoje, no seio do Serviço Nacional de Saúde (SNS), um destes momentos.
Um ponto crítico, onde a fidelidade cega aos modelos financeiros obsoletos e mecanicistas parece estar a ameaçar corroer os próprios fundamentos daquilo que entendemos por saúde. Como já tenho defendido publicamente não se trata de uma crise de recursos – é, antes, uma crise de significados, de valores!!.
De todos os desafios que enfrentamos, talvez o mais urgente seja este: sermos capazes de refundar a gramática do financiamento em saúde. Substituir a linguagem da produção pela linguagem da relação!!. Trocar o compasso industrial pelo tempo do cuidado!. Renascer, enfim, como um sistema que, definitivamente, seja capaz de ouvir!.
Parece-me lógico afirmar com alguma segurança que o nosso SNS não é uma abstração algorítmica nem um organograma funcionalista! É uma teia viva de relações humanas!. Confundir exclusivamente este sistema com a ciência médica enquanto disciplina técnico-científica não só é redutor como é epistemologicamente incorreto. A saúde não se constrói num único consultório, mas na pluralidade dos gestos interdependentes de enfermeiros, médicos, técnicos, psicólogos, terapeutas, assistentes operacionais e administrativos – todos eles cuidadores, todos eles parte de uma orquestra cuja harmonia é invisível aos olhos dos habituais dashboards, mas profundamente tangível na experiência de quem é escutado no momento certo. E, contudo, esta orquestra tem sido conduzida por uma partitura errada: uma lógica financeira que mede o ruído, mas que é incapaz de escutar a melodia!.
Quero aqui relembrar os que possam eventualmente estar mais esquecidos que, desde a sua génese, o SNS foi pensado como um projeto de coesão social, um corajoso ato político de justiça. Mas nos últimos anos, esta matriz fundadora, ensinada durante décadas nas melhores universidades contemporâneas, tem sido progressivamente sabotada por um modelo de financiamento que prefere recompensar a rotatividade e ignorar a sua permanência. Cada ato clínico passou a equivaler a uma unidade de mérito económico, numa lógica que lembra mais uma linha de montagem do que um espaço de cuidado. Este paradigma industrial – muito presente no paradigma New Public Management -, ao ser transplantado para o domínio da saúde gerou um paradoxo insanável: exigiu eficiência numa matéria cujo núcleo é, precisamente, a ineficiência do tempo partilhado, da escuta demorada e da espera compreensiva!.
A tese que aqui me atrevo a propor – e que, ao contrário do que nos querem fazer querer, não é uma utopia, mas uma urgência racional – é a de que o financiamento do SNS deve ser radicalmente repensado a partir da densidade relacional dos cuidados e não da contagem dos seus procedimentos. Isto implica obviamente um deslocamento epistemológico profundo: deixarmos de ver a saúde como uma sucessão de atos clínicos isolados e passarmos a compreendê-la como um fenómeno ecológico, tecido por afetos, histórias, vínculos, ambientes e contextos de vida!!. A consulta deve deixar de ser um instante técnico para se tornar uma encruzilhada de sentidos. O profissional deve deixar de ser apenas um executor para se tornar um leitor dos múltiplos sofrimentos. E o utente deve deixa de ser um caso para se tornar uma pessoa que volta a confiar no sistema.
Tal viragem conceptual iria exigir a introdução de novos critérios de avaliação e de novos instrumentos de análise. O atual sistema não pode continuar a ignorar aquilo que hoje ainda se considera imensurável: o grau de empatia percebida, a capacidade de um profissional criar segurança emocional, a redução da ansiedade induzida pelo sistema, a sustentabilidade afetiva das equipas, a continuidade terapêutica e a literacia em saúde promovida em contextos reais. Estas variáveis, completamente descartadas por parecerem profundamente vagas, são na verdade os verdadeiros pilares de uma saúde regenerativa. Só um sistema que consiga medir a confiança que gera pode aspirar a ser confiável!. E só um sistema que reconhece o valor do tempo dedicado pode aspirar a ser valioso!!.
Esta visão não é incompatível com a responsabilidade orçamental – pelo contrário. Estudos internacionais demonstram que sistemas centrados na relação e na prevenção têm melhor custo-efectividade a longo prazo (Starfield et al., 2005; Kringos et al., 2013). O que é efetivamente dispendioso é a doença evitável, a rotatividade que impede o diagnóstico precoce, a medicalização que substitui a escuta. O que esgota os recursos não é o cuidado demorado, mas a sua ausência!!. O SNS precisa de saber investir onde verdadeiramente se poupa: na construção lenta de vínculos terapêuticos, na estabilidade das equipas, na integração de cuidados e na presença territorial!.
A territorialização, aliás, não deve ser vista como uma descentralização funcional, mas como uma re-humanização geográfica do sistema. A saúde não acontece nos edifícios! Acontece nos bairros, nas escolas, nos lares, nas casas, nos corpos em movimento. Financiar as equipas comunitárias, as unidades móveis, as estruturas de proximidade não é um luxo!! É antes o retorno ao princípio fundador da saúde como um bem comum. Esta proximidade exige tempo, exige continuidade, exige reconhecimento e, por isso mesmo, deve ser financiada como tal. Não se remunera apenas o ato clínico… financia-se a sua presença!. Não se premeia a velocidade… valoriza-se o seu enraizamento!.
Contudo, esta nova ´economia dos cuidados` não se poderá afirmar sem um sobressalto ético e cultural. Obviamente, o mais difícil de fazer numa organização tão complexa como é o caso do SNS! É preciso que a sociedade reaprenda a distinguir entre preço e valor!. Que os decisores políticos consigam compreender que a escuta ativa não é tempo perdido, mas um tempo fundador!. Que os profissionais sejam formados não apenas na técnica, mas na difícil arte da presença!. Na verdade o que já se fazia nas boas escolas há 30 anos atrás. Que os cidadãos sejam capazes de exigir um SNS que os veja e não apenas que os trate!. Esta transformação será difícil e exigente. Mas a alternativa – persistir no atual modelo – é optar por caminhar no sentido de uma progressiva e definitiva entropia.
No fim de tudo, é sempre o mesmo silêncio que cura: o da escuta demorada, o da atenção não apressada, o da presença que não contabiliza. Um sistema de saúde verdadeiramente inteligente será aquele que compreende que a sua principal moeda de valor – embora relevantes do ponto de vista da gestão – não são os dados, os dispositivos ou os relatórios de produtividade, mas antes a qualidade da relação que se conseguirá estabelecer no momento exato junto de alguém que precisou de ser observado com atenção. E este momento – este instante de humanidade – nunca poderá ser financiado com tabelas!. Deve ser protegido com política corajosa. Sustentado na ética. E inscrito, para sempre, no centro da nossa ideia de futuro!!
Administration # Executive & Technical Director # Health Advisor # National Instructor | RN & Nursing Education Specialist # PostGraduate & Master´s in Health Services Management # PostGraduate Public Policy Evaluation.
( NOTA: Este texto visa ser apenas uma artigo de opinião. )
Referências:
Donabedian, A. (1988). The quality of care: How can it be assessed? JAMA, 260(12), 1743–1748. https://doi.org/10.1001/jama.1988.03410120089033
Kringos, D. S., Boerma, W. G., Hutchinson, A., & Saltman, R. B. (2013). Building primary care in a changing Europe. WHO Regional Office for Europe.
Marmot, M., Friel, S., Bell, R., Houweling, T. A., & Taylor, S. (2008). Closing the gap in a generation: Health equity through action on the social determinants of health. The Lancet, 372(9650), 1661–1669. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(08)61690-6
Starfield, B., Shi, L., & Macinko, J. (2005). Contribution of primary care to health systems and health. The Milbank Quarterly, 83(3), 457–502. https://doi.org/10.1111/j.1468-0009.2005.00409.x
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