Artigo

Artigo em destaque – “Lume” de Henrique Raposo

Porque é que eu passava horas no lume com os meus avós na aldeia?

Porque é que as minhas filhas, com uma infância que seria uma utopia aristocrática para mim, repetem o hábito com os meus pais? Que força é esta? Que poder está ali escondido num lume mantido ao longo de horas ou mesmo dias por um esforço coletivo? Como é que o fogo, uma força tão primária, é capaz de superar barreiras de época, de classe e de personalidade? Não sei. Só sei que o fogo é sempre igual e sempre diferente. O fogo de hoje continua a ser fogo, quimicamente falando, mas tem um aspeto diferente do fogo de ontem, até a cor das labaredas é diferente. Talvez o fogo seja, assim, uma metáfora da família, a constante caótica.

Gosto de imaginar uma fogueira eterna, um fogo que nunca se apaga ao longo das eras. De manhã, alguém pega nas brasas do dia anterior e reinicia o fogo, o mesmo fogo. Não são necessários fósforos ou isqueiros, não é a tecnologia que nos une, é o amor e a lealdade. É este o fogo da família, uma chama que deve ser mantida mesmo em tempos de pandemia. Sim, a lareira tem de arder, como sempre, neste Natal. Os velhos até podem ficar na outra ponta da sala ou cozinha, mas a lareira é para acender. A inação na velhice mata. Estou a escrever esta crónica a dois metros da lareira dos

meus pais; as minhas mãos tisnadas estão a sujar o teclado do meu portátil, insuportavelmente ergonómico e urbanita.

Estou aqui porque mantenho o que disse logo em março: a solidão mata os velhos.

A solidão mata logo algumas pessoas e vai matando outras como uma píton a estrangular a presa. Se o vírus é uma ameaça física, o distanciamento é uma ameaça mental. Qual é a pior? Além do mais, a concentração excessiva no vírus retira a nossa atenção de outras ameaças físicas, ataques cardíacos e outras doenças ‘normais’ que estão a dizimar outras pessoas, outros óbitos que não podem ser esquecidos. Eu tenho algum receio de que a minha mãe apanhe covid, mas tenho sobretudo medo dos efeitos cognitivos e afetivos da solidão ou de um ataque cardíaco não atendido por um sistema de saúde focado apenas numa ameaça. E sabem porque é que demorámos oito meses a despertar para o caso SEF? Porque só se fala da covid. Tenho mais medo desta dormência amoral do que do vírus.

Sim, tenho medo de transmitir covid aos meus velhos nesta lareira, mas tenho ainda mais medo de os abandonar numa lareira por acender. Os perigos físicos e mentais deste segundo caminho superam os perigos do primeiro. São perigos pessoais e sociais, até porque há demasiada gente que se sente legitimada pelo distanciamento social, pelo teletrabalho pela telescola. Há demasiada gente a deixar apagar o fogo; na verdade, há demasiada gente a atirar água para as brasas. Não é só inação, há uma ação

consciente. Muitas pessoas estão felizes por não terem de lidar com outras pessoas. Nesta lógica, a pandemia legitima o filho único, a solidão, a  obsessão com o controlo total sobre tudo e todos, o ultraindividualismo, as pessoas sem filhos, as pessoas que abandonam os velhos. Lamento, mas há que tisnar estas pessoas.

Henrique Raposo, In Expresso

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