Nesta crise sanitária que nos aflige, houve falhas dos decisores políticos, as quais, pelo menos em parte, têm que ver com deficiente ligação
entre governantes e cientistas. Nos países em que a ciência está bem enraizada, os políticos ouvem os cientistas por mecanismos institucionais: existem conselhos colegiais para que a melhor resposta da ciência chegue a quem tem de decidir. Nós não temos na covid-19 uma comissão de especialistas de várias disciplinas que dêem pareceres independentes, depois da necessária discussão interna. Gostava de ter visto os cientistas de áreas da saúde, que os temos com méritos indiscutíveis, reunidos num conselho com um porta-voz que representasse a ciência, sem compromisso com a política. Não havendo, a ciência está, como disse Constantino Sakellarides, ex-director geral da DGS, a ser “invocada em vão” (DN, 24/1). Sim, eu sei que tem havido reuniões de peritos no Infarmed. Mas não percebo para que servem: mais parecem um “teatro” que é levado à cena pelos governantes, quando lhes convém e para os fins que lhes convêm. Parafraseando uma
conhecida piada, o Governo usa-as como os bêbados usam os postes: mais para suporte do que para iluminação. Os cientistas que
foram chamados a intervir fizeram-no decerto o melhor que puderam e na melhor das intenções, mas sempre a título individual e sem meios para emitirem um parecer colectivo. Pensar que de uma sessão improvisada, convocada quase de véspera, pode emergir um consenso
científico é não perceber o que significa esse consenso, nem sequer — o que é pior — perceber a natureza da ciência. Um especialista só o é numa dada área e a interacção entre áreas exige colaboração contínua e demorada. O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior sabe
isso, mas, no fundo do ranking dos ministros, não se faz ouvir. A governação está divorciada da ciência.
As ditas reuniões têm sido resumidas pelo Presidente da República, por governantes e por representantes dos partidos políticos, e não por cientistas, num nítido atropelo da ciência pela política. Na última dessas reuniões, a 12 de Janeiro, o primeiro-ministro concluiu, não sei como, que havia consenso dos cientistas para manter abertas as escolas dos alunos até aos 12 anos e que não o havia para as outras, pelo que decidiu mantê-las todas abertas. O resultado é o que se sabe: fez marcha atrás passados poucos dias.
A pandemia estava a crescer desalmadamente, porque tinha sido um dislate o relaxamento no Natal, assim como a reabertura das escolas no início do ano. Se o Governo tivesse querido discutir o Natal, os especialistas ter-lhe-iam dito que outros países europeus, com números de
infectados muito menores do que os nossos, tinham sido bem mais prudentes. Agora são esses países que nos vêm prestar auxílio de
emergência.
O divórcio entre Governo e ciência está também patente na vacinação. Graça Freitas criou em Novembro uma comissão técnica de vacinação contra a covid-19 com 11 especialistas. Pois o Governo, passado um mês, resolveu criar uma task force para a mesma área, integrando vários ministérios (o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ficou de fora). O objectivo da vacinação só será atingido se vacinarmos rápida e maciçamente, a começar pelas pessoas de maior risco, na qual estão todos os idosos. Não é isso que está a suceder: As pessoas com mais de 80 anos não residentes em lares foram de início esquecidas.
Gostava de ter visto um plano claro quanto aos grupos de prioridade, prazos, logística e prevenção de abusos. Não há sequer um plano estruturado, com base na ciência, mas antes uma sucessão de remendos. Navega-se à vista. Não admira que a opinião dos especialistas da dita comissão técnica em favor do maior espaçamento entre doses tenha sido ignorado pela task force, distante como está da área biomédica. A pandemia é um assunto muito sério, onde a competência devia estar à frente de tudo.
Em Portugal podíamos e devíamos organizar melhor a nossa vida pública. Quando não há um plano, uma tarefa pode até por sorte correr bem, mas em regra não corre. Há quem se gabe da nossa capacidade de desenrascanço, mas nesta como noutras alturas era melhor estar
calado. Outros países onde há mais organização não estão, como nós, nos cuidados intensivos.
Carlos Fiolhais In Público de 04 de fevereiro de 2021.
Comentários recentes