Quando as figuras públicas decidem assumir e tornar pública a sua condição de saúde, há ganhos importantes para a sensibilização da comunidade estímulo ao reforço das políticas públicas que viabilizem mais e melhores respostas. A recente morte do cantor Liam Payne reacendeu o debate sobre a saúde mental que teve um momento alto com Simone Biles, a lenda viva da ginástica artística serviu de inspiração a milhares de atletas e fãs, não só pelos triunfos na pista. No decurso dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, Biles anunciou a sua retirada da competição devido a problemas de saúde mental. “Não sou o próximo Usain Bolt ou Michael Phelps, sou a primeira Simone Biles”. Em Portugal, são várias as personalidades que já falam abertamente: António Raminhos, Nuno Markl, Sara Sampaio, Carolina Deslandes. Seria importante, no campo da doença de Alzheimer e outras Demências, temos exemplos estrangeiros (Bruce Willis, Ronald Reagan) – ter pessoas, com impacto mediático, a assumirem a sua condição e a explicarem que, apesar das dificuldades inerentes à doença, é possível viver melhor, se preparados, apoiados, cuidados, respeitados, não estigmatizados, não ridicularizados, não excluídos, não isolados. A demência foi definida, pela OMS, como prioridade de saúde pública, a nível global, em 2008. A demência é definida como uma perda de capacidade intelectual que impede as pessoas de realizarem as atividades sociais e profissionais da vida diária. A doença de Alzheimer (60 a 70%) é a forma mais comum de demência e uma das principais causas de incapacidade, dependência, e morte das pessoas idosas em todo o mundo.
O jornalista Rodrigo Guedes de Carvalho (RGC) publicou na sua página do Facebook o texto “AS HIENAS DE VOLTA DO LOBO”, do qual extraio um parágrafo: “António Lobo Antunes está vivo de todas as maneiras. E quando já não respirar estará sempre mais vivo do que as hienas que já o rondam.” Subscrevo a revolta que sente e que perpassa ao longo do texto porque um “colega” de profissão, João Céu e Silva, decidiu revelar, a propósito da reedição da obra “Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes”, numa clara e vil estratégia de marketing, que António Lobo Antunes sofre de demência, algo que estaria a ser gerido com recato, na intimidade da família. O Expresso titula: “António Lobo Antunes, o escritor que não queria ser deste mundo e já não é” e dá nota do que poderá ser lido na introdução: “O Expresso teve acesso exclusivo ao livro. Nele, o jornalista anuncia o que para editora e família tem sido indizível, descreve e reflete sobre o silêncio, “a demência” e o apagamento total do escritor, afirmando-o “irreconhecível”. O escritor que tanto tem aguardado pelo merecido Nobel, não merecia, no ano em que não publica um novo livro, como era seu hábito, em outubro, ser desrespeitado desta maneira. Decide dar a explicação da ausência pública do autor e vai mais longe: “A demência que o foi invadindo acentuou-se no confinamento da pandemia de covid-19.” Revela ainda que se impôs o “silêncio no reino da polifonia”, pena é que não se tenha autoimposto o silêncio e o respeito como indiscutível mais valia. Volto ao texto do também escritor RGC, “É pena que António Lobo Antunes não possa reagir aos que lhe querem roer já os ossos que prepararam isto andando sempre de volta dele.”
Quem também não consegue reagir é Ricardo Salgado. Recordo que a doença de Alzheimer é uma síndrome (quadro clínico ou conjunto de sintomas de causas ou etiologia variadas) de natureza progressiva, caracterizada pela deterioração da função cognitiva. A doença afeta a memória, o raciocínio, a orientação, a compreensão, o cálculo, a capacidade de aprendizagem, a linguagem e a lucidez. O défice da função cognitiva é muitas vezes acompanhado, por vezes precedido, por uma diminuição do controlo emocional, do comportamento social ou da motivação. Ricardo Salgado foi um dos representantes de proa do capitalismo selvagem, que deu cartas em Portugal, decidindo ou influenciando muitas das decisões estratégicas para o país, tendo sido considerado o “dono disto tudo”. Os lesados do BES merecem todo o respeito. Aquando dos possíveis ilícitos, estaria na posse das suas faculdades. É importante que a justiça cumpra a sua missão. Independentemente das questões da (in)justiça, a dignidade humana não pode, em momento algum, ser engolida por qualquer estratégia de defesa que terá decidido expor o homem à turba de abutres, insensíveis ao olhar, distante e perdido, e caminhar arrastado e desorientado. Muitos comentadores revelam a total falta de empatia e desconhecimento quanto a esta doença, deixando evidente o quanto o estigma está enraizado. Por estes dias, entre algumas leituras relacionadas com o idadismo – recomendo “La Trampa de La Edad” (Vania de La Fuente, 2024) – revisitei, ainda que superficialmente, o pensamento de Hannah Arendt e retive que “o declínio da empatia humana é um dos primeiros e mais reveladores sinais de uma cultura prestes a cair na barbárie.” As hienas e os abutres, na “Civilização do Espetáculo” (Mario Vargas), triunfam frente à humanização e dignidade da desejável “Civilização do Cuidado”.
José Carreira
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