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É tempo de reconhecer o valor do cuidador informal!

O reconhecimento do cuidador, materializado no estatuto do cuidador informal, é fundamental por vários motivos.

Cuidador informal é todo aquele que presta cuidados a uma pessoa (normalmente sem receber nenhum pagamento ou contrapartida financeira) que precisa de ajuda para as atividades da vida diária, devido a algum tipo de limitação ou fragilidade decorrente de doença prolongada, deficiência ou deterioração de capacidade funcional. Quando perguntamos a alguém por que é cuidador, muitos destes cuidadores informais nem pensam em si próprios enquanto tal e, frequentemente, encontram o sentido da sua acção nas relações fortes e significantes, de amor e afeto, que os unem à pessoa de quem cuidam. O reforço desses laços é, para muitos, a única forma de compensação que encontram para os cuidados que prestam e para as opções, muitas vezes duras, que tomam em relação às suas próprias vidas quando decidem tornar-se cuidadores.

A pergunta que temos que fazer é outra, porém: qual é o valor que tem para todos nós, enquanto coletivo, o cuidador informal?

Sabemos que o volume de cuidados que os cuidadores informais asseguram excede, largamente, em valor económico, aquele que é prestado no âmbito de estruturas formais. Não conseguimos sequer imaginar um cenário em que todos os cuidadores informais, de repente, deixassem de o ser. Não sabemos bem quantos são, afinal formalmente não existem. Mas estima-se que só em Portugal possam ser cerca de 800 mil. Poderíamos esperar que, com números destes, o universo de cuidadores informais fosse compreendido e valorizado. Mas não é! Para a maioria, ser cuidador significa assumir um papel que não é socialmente reconhecido, um papel que não é valorizado e, por isso mesmo, significa ser invisível e estar isolado.

Todos os estudos, nacionais e internacionais, confluem em relação a algumas conclusões preocupantes em relação às trajectórias de vida dos cuidadores informais. Para muitos, ser cuidador significa colocar em suspenso a vida profissional, muitas vezes de forma definitiva. Com isso vem a deterioração acentuada das condições financeiras, no imediato pela perda de rendimento, mas com efeitos diferidos no tempo: comprometendo-se a trajetória laboral, compromete-se desde logo a carreira contributiva e, nesse sentido, o conjunto de benefícios sociais que desta dependem (por exemplo, a pensão de velhice). Com frequência, os cuidadores informais executam tarefas para as quais não estão treinados, com consequências graves para a sua saúde mas, igualmente, para a qualidade do cuidado que prestam. Todos os estudos demonstram que a saúde dos cuidadores, tanto física como psicológica, é pior que a dos não cuidadores. Cuidar, por outro lado, é frequentemente uma responsabilidade que concorre com outras dimensões da vida, deixando pouco tempo e espaço para essas. Os cuidadores vêem fortemente comprometidas as suas oportunidades de lazer e participação social e cultural, acabando por entrar em processos de isolamento social que deixam marcas profundas ao nível da saúde mental e do bem-estar emocional. Vários estudos apontam, por exemplo, para a elevada incidência de depressão entre cuidadores informais como resultado da acumulação do sentimento de isolamento e quebra da vinculação social.

Apesar de todos estes custos pessoais, apesar de todos estes sinais amplamente identificados, os cuidadores informais continuam, de forma resiliente, a assegurar a maioria dos cuidados a cidadãos que, embora cidadãos, não podem contar com o apoio que lhes era devido por parte de todos nós, enquanto Estado, no âmbito de sistemas formais, e que por isso dependem da generosa dádiva que alguns, desinteressadamente, abnegadamente, continuam a oferecer. É esta nação de cuidadores informais que é urgente reconhecer!

O reconhecimento do cuidador, materializado no estatuto do cuidador informal, é fundamental por vários motivos.

Antes de mais, só reconhecendo oficialmente uma condição é que lhe concedemos existência social real. Não bastam discursos públicos de apreço, elogios de circunstância e ações pontuais. Criar mecanismos de conciliação da vida profissional com a prestação de cuidados, treinar e apoiar tecnicamente os cuidadores, compensar perdas financeiras decorrentes do cuidar, implementar soluções de apoio para descanso do cuidador, não são iniciativas que possam ficar dependentes das vontades dispersas de esta ou aquela organização. São, pelo contrário, mecanismos de proteção social que devem inscrever-se numa lógica de cidadania e, nesse sentido, que devem inscrever-se numa lei geral que consagre, juridicamente, o estatuto de cuidador informal. Só assim se transformará em matéria de direitos aquilo que persiste confinado ao universo da assistência caridosa.

Por outro lado, reconhecer oficialmente uma condição, abrindo espaço para a definição de direitos, é também condição para a definição de deveres. A invisibilidade do cuidador informal é, na realidade, e muitas vezes, a invisibilidade de quem é cuidado também. A estes assistem direitos igualmente: o direito de ser cuidado com qualidade; o direito de ser respeitado na expressão livre da sua vontade; o direito de participar na comunidade. Quando a relação cuidador-pessoa cuidada não é reconhecida formalmente, então não há espaço para a definição de standards na prestação de cuidados, não há espaço para a implementação de mecanismos de fiscalização e de proteção dos interesses de quem é cuidado.

É urgente, por isso, reconhecer o estatuto de cuidador informal. Legislação sobre o tema é, sem dúvida, bem-vinda, mas lembremo-nos que vai ser apenas o primeiro passo. A consagração na legislação laboral de direitos do cuidador não significa nada se não se fizer acompanhar do reconhecimento efectivo, por parte dos agentes económicos e das entidades empregadoras em particular, do valor social do ato de cuidar. A consagração de direitos de acesso a formação e treino não significará nada se os profissionais de saúde não reconhecerem a capacidade e competência de quem cuida por amor. A consagração de direitos de apoio psicológico não significará nada se à sua implementação não assistir proporcional mobilização de recursos por parte das agências públicas com responsabilidade na matéria.

Devagarinho, bem devagarinho, estamos a começar a dar pela existência desta nação de cuidadores informais. Ao longo do ciclo da vida, a maior parte de nós intersectará essa nação, umas vezes como cuidador, outras como pessoa que recebe cuidados. O caminho é comum, diz respeito a todos. É um caminho desafiante, que vai exigir diálogo e compromisso. Mas como todos os caminhos, só se fará caminhando.

 

ALEXANDRA LOPES

Professora do Departamento de Sociologia da FLUP – Universidade do Porto

aslopes@letras.up.pt

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