Artigo

“É urgente um plano nacional para a demência”

José Carreira, presidente da associação Alzheimer Portugal, admite que “falta muito para se atingir o nível desejável” de qualidade de vida para quem sofre desta condição degenerativa no nosso país. Ainda assim, o médico mostra-se “satisfeito” com os sinais mais recentes da parte do Ministério da Saúde. Falta juntar o da Solidariedade e Segurança Social à equação para se definir um plano alargado, defende, em entrevista à VISÃO, sabendo-se que as estimativas apontam para um aumento do número de casos nos próximos anos.

Aassociação Alzheimer Portugal completa 30 anos em 2018 e, durante este mês de setembro, está a percorrer o País com a iniciativa Passeio da Memória, cujo objetivo é sensibilizar as populações para a doença e angariar fundos para outras ações. A propósito do Dia Mundial da Doença de Alzheimer, que hoje se assinala, o médico José Carreira, presidente da associação, faz o ponto da situação da realidade portuguesa, um dos maiores focos de demência a nível mundial, quando ponderado com o total de habitantes.

 

Portugal é o quarto país da OCDE com maior incidência de casos de demência por cada mil habitantes, sendo a doença de Alzheimer a mais presente. Quantos doentes existem em Portugal?

De acordo com os dados da Alzheimer Europe, estimamos que existam entre 130 e 132 mil pessoas com Alzheimer em Portugal. Se falarmos de demência, o número sobe para 180 mil pessoas afetadas.

 

Como explica que Portugal seja um dos países da OCDE com maior prevalência de demência?

O principal fator de risco é a idade avançada e todos os dados internacionais indicam Portugal como um dos países mais envelhecidos do mundo. Poderá haver aqui uma causa direta, mas importa também dizer que envelhecer não é sinónimo de demência. Por outro lado, os dados internacionais dizem que a qualidade de vida em Portugal tem vindo a decrescer e, obviamente, isto potencia o desenvolvimento de patologias.

 

A qualidade de vida de quem sofre de Alzheimer tem vindo a melhorar ou a piorar?

É uma questão que não está medida. Começa a haver uma oferta mais diversificada de serviços não farmacológicos que poderá melhor a qualidade de vida destas pessoas, mas ainda há algo que vai falhando. Sinceramente, ainda falta muito para se atingir o nível desejável.

 

Qual a maior dificuldade que os doentes enfrentam?

Desde logo a dificuldade do diagnóstico, que é um primeiro obstáculo. Depois, as respostas que existem no nosso país são escassas e ficam muito aquém das necessidades, até porque algumas são caras e, por isso, inacessíveis a muitos portugueses. Por outro lado, quando falamos de alguém com demência, temos de pensar também no seu cuidador. Por norma são cuidadores informais, mulheres, e estão bastante desprotegidos, apesar de depender muito deles a qualidade de vida dos doentes. Há ainda a questão do estigma. Existe muito preconceito, da própria pessoa que tem a doença e da família, que deve perceber o que está a acontecer para se encontrar a melhor solução. Sabemos que vai haver dificuldades e constrangimentos, mas vai ter de existir um novo projeto de vida para aquele familiar.

 

Que opções têm as pessoas que são diagnosticadas?

Essa é a grande dificuldade. A nível de respostas sociais especificamente criadas para pessoas com demência, existem as da Alzheimer Portugal, centros de dia, apoio domiciliário e o primeiro lar especializado em demência, em São João do Estoril, além de uma unidade de cuidados continuados, em Fátima. É evidente que existem muitas outras entidades a prestar serviços e que fazem o melhor que podem e sabem, mas não são especializadas na resposta a estas pessoas. Por isso entendemos que é fundamental formar profissionais de saúde e cuidadores informais. Isso está plasmado no diploma publicado já este ano e que servirá de base para a estratégia nacional para as demências. Estamos bastante satisfeitos porque poderá ser um pequeno passo para o que é preciso fazer.

 

Portugal tem neurologistas suficientes para o número de pacientes que existem?

O rácio é relativamente baixo. E nos centros de saúde, ao nível dos cuidados primários, há ainda uma grande necessidade de dar formação quer aos médicos de família, quer aos enfermeiros.

 

Os médicos de família estão preparados para detetarem os primeiros sinais de demência?

É difícil. Muitos dos sinais iniciais podem ser associados ao envelhecimento, além de que para se fazer um diagnóstico é preciso tempo e muitos desses profissionais de saúde têm um elevado número de utentes. É evidente que já se andou bastante neste campo, mas ainda há necessidade de melhorar, não só a nível dos médicos, mas também na formação dos cuidadores informais.

 

O que é que um doente pode ganhar ao ser diagnosticado precocemente?

Desde logo algo que nos parece determinante, que é decidir ele próprio o que quer que seja a sua vida a partir daí, em termos de cuidados de saúde, gestão do património, se quer ficar em casa ou ir para um centro de dia ou um lar. Ao mesmo tempo, permite-lhe tomar alguns cuidados, que obviamente não resolvem a demência, mas podem garantir-lhe melhor qualidade de vida, desde o acompanhamento médico à escolha das terapias não farmacológicas existentes.

 

Não tem havido muitos avanços em novos medicamentos nos últimos anos, mas em julho passado foi publicado um estudo que apontava uma possível causa para o fracasso de muitos ensaios clínicos, abrindo assim novos horizontes. Tem esperança no aparecimento de novas terapias a curto-médio prazo?

Obviamente, depositamos muita esperança na investigação para um tratamento mais eficaz. No curto-prazo, eventualmente, será difícil porque as coisas levam o seu tempo e a indústria farmacêutica tem tido alguns reveses nos fármacos testados. Mas também sabemos que, nos últimos anos, tem havido um reforço do investimento nesta área, que é absolutamente determinante.

 

Não tem havido muitos avanços em novos medicamentos nos últimos anos, mas em julho passado foi publicado um estudo que apontava uma possível causa para o fracasso de muitos ensaios clínicos, abrindo assim novos horizontes. Tem esperança no aparecimento de novas terapias a curto-médio prazo?

Obviamente, depositamos muita esperança na investigação para um tratamento mais eficaz. No curto-prazo, eventualmente, será difícil porque as coisas levam o seu tempo e a indústria farmacêutica tem tido alguns reveses nos fármacos testados. Mas também sabemos que, nos últimos anos, tem havido um reforço do investimento nesta área, que é absolutamente determinante.

 

Voltando ao plano social: há casos de abandono dos doentes por parte dos familiares?

É uma pergunta de resposta difícil. Maioritariamente, as famílias que podem, optam por cuidar. Agora, é um facto que há muitos idosos que são abandonados nos hospitais. Deixam de ser casos clínicos e tornam-se casos sociais, não necessariamente por sofrerem de demência. Também sabemos que, sobretudo no Interior, há muitas pessoas a viverem sozinhas, certamente algumas com demência. Não de tratará de abandono, porque muitas famílias estão emigradas ou a trabalhar nas grandes cidades, mas naturalmente que é uma preocupação. Quando existem outras patologias associadas à demência, são pessoas ainda mais vulneráveis e susceptíveis de determinado tipo de abusos.

 

Têm conhecimento de casos dessa gravidade?

Vão chegando alguns ao nosso conhecimento. Das pessoas não serem tratadas como deviam, dos filhos lutarem pelo património, por exemplo. Daí a importância da legislação que vai permitir ao adulto poder escolher quem o vai ajudar quando ele tiver esta dificuldade. De qualquer forma, na maior parte dos casos, a família mostra-se uma célula importante que se preocupa, nem sempre nos timings certos e com a perceção dos serviços existentes, ainda que escassos.

 

As estimativas da OCDE para os próximos 20 anos apontam para um agravamento da prevalência da demência em Portugal, devido ao envelhecimento da população. O que é mais urgente fazer?

É um problema porque vamos ter mais pessoas a viver mais anos e os níveis de natalidade não ajudam. A questão que se coloca é quem e como é que se vai pagar os cuidados de saúde necessários? E mais: quem é que vai cuidar? Por isso é que defendemos a urgência de um plano nacional para a demência, que possibilitará a coordenação entre a área da Saúde e a área Social. A doença de Alzheimer é uma doença da família e, apesar de estarmos satisfeitos com os planos já assumidos pelo senhor ministro na área da Saúde, para nós é absolutamente determinante que o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social possa também apoiar.

 

Em que medida?

Por exemplo, é para apostar em mais centros de dia especializados em pessoas com demência? Em mais lares? Na formação de profissionais e cuidadores? É preciso definir o caminho a seguir no plano social. Aprovar o estatuto do cuidador seria muito importante, porque muitas vezes estas pessoas são surpreendidas com um caso na família e têm de decidir, de um dia para o outro, se vão cuidar ou não, se vão deixar o seu trabalho ou não, e que apoios sociais as podem ajudar se tiverem de abdicar do emprego e respetivo salário.

 

FONTE: VISÃO
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