Portugal é, cada vez mais, um país envelhecido. Por cada 100 jovens há 150 idosos. É o 4.º país da União Europeia com maior número de idosos. Estamos perante uma oportunidade ou uma ameaça?
Existe, de facto, um preconceito em relação à pessoa idosa em Portugal. O envelhecimento é encarado pela população como algo negativo porque representa encargos sociais e económicos, ou seja, é percecionado de imediato como uma ameaça. Para que o envelhecimento possa ser encarado como uma oportunidade, impõe-se a criação de estruturas de apoio em diversas áreas: social, saúde, jurídica. São sem dúvida necessárias novas políticas públicas nestas áreas.
Algumas iniciativas de base comunitária têm iniciativas muito boas e oferecem serviços de qualidade de que são exemplos as associações de moradores. Infelizmente, as boas práticas existentes são pontuais.
Faltam, sobretudo, iniciativas de âmbito nacional, alicerçadas em políticas públicas concertadas.
As políticas públicas e as organizações devem contribuir para que todas as pessoas se sintam integradas na sociedade, independentemente da sua idade. Não querendo ser demasiado pessimista, o caminho faz-se caminhando!
Havendo em Portugal 2,1 milhões de pessoas com mais de 65 anos, das quais 33,6 % com índice de dependência, que fatores se encontram na base dos maus tratos às pessoas idosas?
Há vários fatores de risco que estão na base dos maus tratos às pessoas idosas. Há fatores de risco relacionados com a vítima, com o agressor ou agressora e fatores de risco contextuais e relacionais: famílias desestruturadas, vulnerabilidade e dependência da vítima em relação ao agressor.
A mulher, sabemo-lo, é a principal vítima de violência. É, muitas vezes, vítima ao longo de anos, num ciclo de violência mais alargado, numa perspetiva de violência transgeracional em que as pessoas que perpetuam os abusos, foram educadas, elas mesmas, em contextos de violência de geração em geração.
O isolamento social também deve ser considerado.
Há muitos casos que são tornados públicos de pessoas encontradas mortas passados muitos dias que vivem sem quaisquer laços de vizinhança. As pessoas estão muito distantes umas das outras.
O caso do isolamento das pessoas que vivem no mundo rural ainda é, apesar de tudo, ligeiramente diferente, sendo que vão contando com o apoio de alguns vizinhos e amigos. Quando estes verificam uma quebra de determinada rotina, há alguém que dá o alerta. Se, por exemplo, uma determinada pessoa costuma ir comprar pão regularmente a um determinado local e a uma certa hora, caso tal não ocorra, em regra, alguém procurará saber se estará tudo bem.
No caso da vítima, há vários fatores de risco identificados: dependência funcional, fracas condições de saúde, dificuldades cognitivas, doença mental, demência, ser mulher. No caso do agressor, por vezes, há um histórico de violência, abuso de substâncias aditivas, problemas psicológicos, como uma doença mental, dependência da vítima a nível emocional, financeiro e habitacional.
A OMS indica que uma em cada seis pessoas idosas viveu, no último ano, uma experiência de maus tratos. De que tipo de maus tratos poderemos estar a falar?
Apesar de haver uma maior consciência da violência, uma grande parte da população considera apenas a violência física, aquela que deixa marcas.
A violência psicológica é, contudo, a mais significativa, a que tem mais impacto e que é mais duradora. Podemos estar a falar de ameaças, insultos, humilhação, gritos, privação da liberdade, isolamento social.
Ainda que as pessoas não sejam amarradas, podem, por exemplo, para o seu familiar ir trabalhar ser fechadas à chave, ficando isoladas, confinadas ao espaço da casa ou do quarto, privadas da sua liberdade, dos seus direitos.
Há também abusos de ordem financeira, uso ilegal ou inapropriado do património da vítima, retirada do cartão de crédito e utilização abusiva em compras, levantamentos…
Neste âmbito, as pessoas idosas são vítimas de burlas e de extorsão, fruto da sua debilidade cognitiva e da pouca literacia financeira.
Também a violência sexual ou a interação sexual não autorizada que nem sempre é percecionada como tal, fruto de uma crença cultural que ainda persiste nas gerações mais velhas e que assume a prática sexual como um dever matrimonial induzindo a casos de abuso e violação dentro do próprio casamento.
É também comum a ideia de que a partir de certa idade a pessoa já não é sexualmente ativa, pelo que é frequentemente posta em causa a sua autodeterminação sexual.
Outra forma de maus tratos à pessoa idosa, ainda que possa ocorrer inconscientemente, é a infantilização. É comum apelidar a pessoa como «avozinha», «menina», expressões reveladoras de uma certa condescendência e de falta de respeito. Há determinados preconceitos que estão muito enraizados e que levam a um olhar depreciativo em relação ao idoso – como «De velhinho se volta a menino». A pessoa mais velha não é menos pessoa e não é certamente uma criança, tem uma história de vida, uma biografia, experiências vividas durante o seu percurso de vida.
Quais são os principais fatores de risco?
Os principais fatores de risco são a dependência, o contexto, o preconceito, as alterações nos padrões das famílias, a perceção da sociedade.
Em que contexto há maior incidência / prevalência dos maus tratos – familiar ou institucional?
Os abusos podem ocorrer quer na esfera familiar quer contexto institucional. Os estudos e as estatísticas – nacionais e internacionais – dão nota de que os maus tratos ocorrem principalmente no seio familiar, intrafamiliar e são cometidos pelos/as filhos/as, netos/as, genros/noras, cuidadores/as formais e informais.
A violência em contexto institucional é mais difícil de desvendar. Os/as profissionais podem assistir a maus tratos perpetuados por colegas ou dirigentes das instituições, mas não estão dispostos a denunciá-los por medo de possíveis represálias, como a perda de emprego.
Há uma sensação de impotência para quem trabalha em instituições totais, em que o controlo é efetivo e permanente.
As vítimas, que são as pessoas idosas, também não denunciam por medo das consequências, receiam ter que sair do lar, perdendo, em muitos casos, o único apoio que lhes resta, ficando sem resposta às suas necessidades, sem a imprescindível prestação de cuidados.
O número de denúncias é muito reduzido. Estamos na presença de uma realidade muito invisível.
No seio familiar, as vítimas não apresentam denúncia ou não procuram ajuda por medo e pela vergonha sentida pela vítima. Outro fator que contribui para o silêncio é o facto de nem sempre os abusos serem percecionados como tal. A vítima considera-se ela própria culpada. Há um efetivo sentimento de culpa que resulta de a vítima se considerar um «fardo» para o/a cuidador/a, agressor/a («dou muito trabalho», «a culpa é minha»).
É difícil assumir que se educou um filho ou uma filha que se torna agressor ou agressora.
O projeto Portugal Mais Velho, desenvolvido pela APAV e com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, tem como objetivo encontrar respostas a estes desafios?
É fundamental fazer-se uma reflexão séria sobre o processo de envelhecimento, tendo em mente, de forma mais abrangente, os direitos humanos, para que se deixe de deixar de olhar para as pessoas idosas como «eles» porque continua, hoje, a haver um «nós» – os novos – e um «eles» – os velhos.
Muitas pessoas idosas não são levadas a passear, não se lhes dá o lugar no autocarro…é bom que cada pessoa não esqueça que também será idosa, mais frágil com necessidades específicas. A maioria das respostas sociais existentes não promove a autonomia. Ainda se verifica, mais do que seria desejável, a institucionalização precoce. Uma das explicações para esta realidade residirá na falta de respostas para manter a pessoa em casa na comunidade durante mais tempo.
O projeto Portugal Mais Velho tem uma forte componente de advocacia social e tem como objetivo central apresentar recomendações aos decisores políticos, com o intuito de que estas sejam levadas em consideração na definição de políticas púbicas. Desta maneira, no âmbito do projeto Portugal Mais Velho, será elaborado um relatório final com recomendações técnicas e práticas sobre violência contra pessoas mais velhas.
Os resultados do projeto serão disseminados junto de parceiros sociais, decisores políticos e económicos.
O idadismo, preconceito contra a pessoa idosa, é transversal às várias áreas da sociedade, da política, entre os jovens, no seio das famílias… os idosos perderam o estatuto respeitável que tiveram em tempos. A forma como são tratados, em algumas circunstâncias, é totalmente desadequada – as famílias «atropelam» as suas vontades.
É também notória a falta de preparação para o processo de envelhecimento.
Importa ter em linha de conta que, muito provavelmente, todos seremos, um dia, cuidadores/as e / ou cuidados/as por alguém.
Nesta perspetiva, um dos resultados esperados, com a execução do projeto Portugal Mais Velho, é a sensibilização do público, nomeadamente no que toca à intolerância social para com a violência contra as pessoas idosas.
Que atividades vão realizar no âmbito deste projeto?
Foi criado um grupo de trabalho interdisciplinar que congrega investigadores, juristas, juízes, assistentes sociais, diretores técnicos, profissionais de saúde, assistentes sociais, membros das forças de segurança… – e opera numa lógica de think-tank.
Trabalhamos com o foco na necessária mudança de mentalidades quanto ao envelhecimento, para que tenhamos mais e melhores políticas públicas e se implementem novas soluções, respostas integradas e holísticas. Serão desenvolvidas ações de advocacia social e uma campanha de sensibilização.
O objetivo central do projeto Portugal Mais Velho é promover a mudança de políticas (públicas, sociais e privadas) na área do envelhecimento e consciencializar o público para a temática da violência contra as pessoas mais velhas.
A OMS informa que Portugal, num conjunto de 50 países europeus, está entre os cinco piores no que se refere ao tratamento aos mais velhos. Os exemplos de idadismo, de preconceitos contra a pessoa idosa, são comuns, mesmo nos órgãos de comunicação social. Este país não é para velhos?
Este país não é para velhos como podemos constatar nos rankings da OMS. Nós temos uma esperança de vida acima da média europeia, mas também uma taxa de dependência das mais elevadas. Continuam a faltar respostas promotoras da autonomia.
Quais são as prioridades estratégicas definidas pela APAV no âmbito da violência contra as pessoas idosas?
Há 30 anos que a APAV trabalha na sensibilização da população portuguesa. Procuramos não dar resposta apenas depois da violência, mas também trabalhar na prevenção para evitar que ocorram os atos de violência. Temos verificado que há alguns avanços, mas ainda há um longo percurso para percorrer. Queremos diminuir a falta de informação da população em geral e, fundamentalmente, das vítimas.
Neste domínio, parece-nos evidente a urgência da definição de políticas públicas geradoras de uma efetiva prevenção da violência.
TEXTO: JOSÉ CARREIRA
FOTOGRAFIA: PEDRO DOS SANTOS
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