“Unearthing”. A homenagem de Rita GT às mulheres vítimas da expansão colonial masculina
“Mulheres forçadas a deixar as suas casas, mulheres cantadeiras que trabalharam toda a vida na casa e no campo, que nos trouxeram canções, que partiram e nunca mais voltaram”. São estas as mulheres a quem a artista plástica RitaGT prestará tributo, numa vídeo performance inédita com apresentação marcada para 8 de março, data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher.
“Unearthing” – projeto comissionado pelo museu britânico de escultura ao ar livre Yorkshire Sculpture Park (YSP) – afirma-se como um ato de reconhecimento da história esquecida das mulheres que, durante a era colonial, foram obrigadas a deixar as suas terras e casas e a emigrar para vários pontos do mundo.
Realizado no âmbito de um programa dedicado a mulheres artistas, o trabalho – que terá transmissão às 18h, através do canal de YouTube do YSP – evoluiu de uma residência artística que teve lugar nesse mesmo museu em 2018 e concretiza-se numa performance vocal e de movimento, que conta com a participação de intérpretes do grupo tradicional Cantadeiras do Vale do Neiva e duas bailarinas, tendo como cenário o espaço da antiga Fábrica de Louça de Viana do Castelo – cidade onde a artista vive e trabalha atualmente. Como conta, “Viana era conhecida por esta produção de cerâmica, inicialmente feita só por homens, e que depois foi aberta ao trabalho das mulheres, quando as mulheres tiveram a permissão para trabalhar.”
Realizado no âmbito de um programa dedicado a mulheres artistas, o trabalho – que terá transmissão às 18h, através do canal de YouTube do YSP – evoluiu de uma residência artística que teve lugar nesse mesmo museu em 2018 e concretiza-se numa performance vocal e de movimento, que conta com a participação de intérpretes do grupo tradicional Cantadeiras do Vale do Neiva e duas bailarinas, tendo como cenário o espaço da antiga Fábrica de Louça de Viana do Castelo – cidade onde a artista vive e trabalha atualmente. Como conta, “Viana era conhecida por esta produção de cerâmica, inicialmente feita só por homens, e que depois foi aberta ao trabalho das mulheres, quando as mulheres tiveram a permissão para trabalhar.”
As mulheres que trabalhavam nessa fábrica, explica Rita, estavam encarregues de fazer a pintura típica de Viana. Muitas das mulheres cantadeiras que participam neste vídeo têm familiares que trabalharam naquele lugar secular, ou elas próprias o fizeram. Mas tiveram também momentos em que foram imigrantes, no período colonial, “onde em Portugal se vivia muita pobreza e miséria”, refere. “As músicas e os cânticos serviam como um ritual de limpeza de cura, quase como uma meditação, que lhes permitia conectarem-se com a essência, e não ficarem a vibrar na parte negativa”.
Passado colonial
Para a artista plástica, a história colonial é um tema “supersensível, mas fundamental”. Porque há uma “necessidade de cura que advém de toda a história de Portugal e da Humanidade”, acredita. “É preciso, realmente, repensar o que foi e reescrever de uma forma muito mais justa e digna. Mas há também esta perspetiva destas mulheres, que é o que me interessa, é falar destas mulheres que, na verdade, tinham uma vida condenada a servir os homens e que eram levadas, muitas vezes, para as colónias e ficavam naquele não-lugar de serem serventes também, mas num layer acima, por causa do privilégio da cor. Mas acabavam por ser, na mesma, escravas, de certa forma”.
Essa é a perspetiva que RitaGT pretende acrescentar à história colonial. “Temos várias perspetivas da mesma história e, quanto mais conseguirmos trazer essas várias perspetivas, mais completo fica o nosso ponto de vista de uma determinada situação. O nosso passado, a nossa herança colonial, é uma estrutura que precisa de muito mais perspetivas, porque é um passado muito rico e temos mesmo de adicionar essas perspetivas nesse processo de cura, que é o que mais precisamos de fazer. É processo de cura, falar das coisas, para que unidos possamos superar e conseguir chegar a estados muito mais elevados de paz, de consciência humana, de irmandade e fraternidade”, clarifica.
Em “Unearthing”, a cerâmica e os cantares são símbolos da história portuguesa. Inseridos na esfera do trabalho doméstico e rural, estes símbolos projetam-se centrais na produção e circulação artísticas associadas ao feminismo e às questões de género.
Já o elemento coral da performance evoca canções e cantos tradicionais que viajaram nas vozes das mulheres e será cantado em português, sem legendagem, preservando assim a diversidade linguística e os provincianismos presentes nas letras e na interpretação.
Às Cantadeiras do Vale do Neiva juntar-se-á a bailarina luso-angolana Piny – “que faz todo o sentido neste projeto, porque estamos a falar dessa estrutura do colonialismo, que está intrínseca na nossa herança” –, Isa Santos, uma amiga de infância da artista; bailarina que nasceu e cresceu em Viana do Castelo, bem como a própria RitaGT.
Para a criadora, mais do que racional, este é um trabalho de “muita energia de sentir”. “Estas mulheres cantam e, ao evocar aqueles cânticos, também nos trazem todas estas parafernálias de emoções, e nós as três vamos fazer essa performance também com a loiça. A loiça que ficou lá cozida e que não foi levada ao forno, está apenas seca. Então, vai ser um espaço de sentir, em que vou permitir, a mim e a todas as mulheres, terem essa voz, fazerem o que estão a sentir e conseguirmo-nos dissociar e não pensar na parte mental e intelectual, e de explicar. Muito mais do que explicar é conectarmo-nos com o nosso lago selvagem de mulheres e podermos ir às nossas entranhas buscar toda essa energia e poder que está em nós, evocando toda a nossa ancestralidade.”
De Viana do Castelo para o mundo
Devido à pandemia, o projeto – que iria acontecer no YSP, na cidade de Wakefield, com associações locais que acolhem vítimas de tráfico humano – teve de ser adaptado. Mas, para RitaGT, “há males que vêm por bem” e “a beleza do trabalho é mesmo essa negociação na zona de contacto.”
“Como acaba por se consolidar, para mim, é sempre a melhor versão do projeto”, diz, sublinhando a importância de poder fazer este tributo a partir de Viana do Castelo, cidade que escolheu para residir e trabalhar, depois de vários anos em Luanda, Angola. “Portugal já é um país periférico, na minha área então, viver em Viana do Castelo é sempre uma condenação. Mas é uma escolha, então é muito bom e produtivo poder trabalhar de Viana do Castelo para o mundo”.
Prosseguindo um trabalho “intrinsecamente feminista” e “ativista”, a artista plástica, quando regressou para Viana, por volta de 2016, começou a trabalhar na pesquisa sobre as fábricas de louça da região. “Viana do Castelo sempre teve uma cultura e uma tradição das louças de Viana, que se foi perdendo com a entrada na comunidade europeia, com a entrada de todas estas lojas chinesas em Portugal, que trouxeram muitas cerâmicas mais baratas, e isso fez com que muitas das fábricas de cerâmica estagnassem ou deixassem de existir”, conta.
Sobre a performance “Unearting”, a criadora reforça a “ligação de colaboração entre gerações mais velhas e gerações mais novas”, naquela fábrica com 242 anos – desativada desde 2006 – mas onde o tempo não parecesse ter passado. “Está desativada, mas é como se fosse ontem. Parece que passou ali um furacão e, de repente, está tudo no sítio, só não tem as pessoas. O espaço em si já tem uma energia brutal.”
Artista, ativista, feminista
Neste projeto, RitaGT dá continuidade à investigação que tem desenvolvido, ao longo dos anos, sobre as histórias pós-coloniais, o lugar das mulheres nas sociedades e a sua ligação à terra, particularmente através da argila e da cerâmica.
Para Helen Pheby, responsável pelo programa curatorial do YSP, “Unearthing” reflete um compromisso sempre presente no trabalho da artista portuguesa, expresso pela criação de momentos que cruzam contemplação e memória. “No centro de todos os discursos que fomentam relações de poder, sejam estes imperialistas, sociais ou de género, existe uma capacidade incrível de esquecer, são autênticas fábricas de esquecimento”, afirma a curadora, acrescentando que “a tarefa de artistas como a Rita, de escritores e pensadores, é analisar esses processos de esquecimento precoce e reativar a nossa memória”.
Formada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes do Porto – cidade onde nasceu – Rita GT tem-se dedicado a temas como a memória, a identidade ou a importância da defesa dos direitos humanos. “É importante, sinto, trazermos para o futuro, ou para uma projeção do futuro, esta herança que é a nossa identidade, a nossa memória, e podermos reescrever a nossa história destes pontos de vista mais ricos, mais completos, mais justos, mais conectados com emoção, com a união, e com esse senso de que somos um.”
Através da imagem, da palavra e da performance, a sua prática artística convoca experiências de vida em vários continentes, para abordar pontos de vista históricos de diferentes culturas e problematizar a simbologia colonial, sob uma perspetiva de ação interrupta que acontece em paralelo ao sistema patriarcal.
“Trabalho como artista plástica, ou visual, há 16 anos, e a cada ano, a cada segundo, tenho estado a tomar mais consciência de qual é a minha posição como artista, como mulher, branca, que viveu muito tempo em Angola; que tem um filho, angolano, cabo-verdiano, português; que tem esta missão maior que é falar, através de uma linguagem não-verbal, para que possa contribuir, de alguma forma, para esta consciência coletiva de nos empoderarmos como seres humanos, como pessoas, e podermos contribuir para um mundo melhor”, declara.
Segundo a própria, o lugar de uma mulher no mundo das artes é ainda hoje “injusto”, invocando alguns nomes – “normalmente esposas de algum grande artista” – como Camile Claudel ou Frida Kahlo, esposas de Rodin e Diego Rivera, respetivamente. “Se formos ver a história da arte, ao longo destes séculos todos, a mulher sempre foi ostracizada e nunca teve um lugar na história da arte, como se não houvesse mulheres artistas. Temos agora um repescar, lá está, de reescrever a história da arte.”
A artista plástica garante, por isso, que um trabalho feminista e ativista é fundamental. “Por mais controverso que seja, por mais que as pessoas achem que o termo não é bom, ou que somos extremistas, ou isto, ou aqueloutro, é, de facto, essa tomada de consciência no coletivo que faz com que os paradigmas mudem. E vemos, aos poucos, essa tomada de consciência a ser espalhada por todo o mundo.”
Texto por Flávia Brito
Fotografia de Raquel Rocha
FONTE: GERADOR
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