Minha mãe sempre me deu a mão, desde as primeiras horas de vida. Por isso acho que essa imagem significa muito para mim e para todos os filhos de mães. Porque hoje temos filhos de pais, certo?
Porque mãe dá tanto a mão? E dá tanto abraço, tanto leite, tanto beijo, tanto apertão, tanto beliscão, tanto puxão de orelha, tanta bronca, tanto elogio, tanto tudo? Porque mãe é reptiliana. Explico. O cérebro tem três camadas: neocórtex, límbico e reptílico. O neocórtex é uma região essencial do cérebro, localizada na parte externa do órgão, ela está relacionada a funções importantes como percepção sensorial, comandos motores, consciência e linguagem. O sistema límbico, também conhecido como cérebro emocional, é um conjunto de estruturas localizado abaixo do córtex e é responsável por nossas interações emocionais. O cérebro reptiliano é o cara. Rústico. Vital. Primitivo. Essencial. Não é reflexivo e age de forma inconsciente e instintiva. Sua função principal é assegurar a nossa sobrevivência. É por isso que mãe não desgruda de filho: é uma relação, antes de mais nada, reptiliana. A cria é protegida contra tudo e contra todos. Amamentar, por exemplo, é uma das conexões mais básicas na relação reptiliana entre mãe e filho. Quem sabe um expert possa contribuir com uma explicação mais científica, mas foi assim que eu aprendi porque mãe é mãe.
Voltando à minha mãe. Dona Lourdes foi uma operária da beleza. Trabalhou décadas como manicure e pedicure no salão de beleza Shangrilá, no bairro das Perdizes, que existe até hoje em São Paulo. O dono era japonês e acho que ele a estimulou a entrar para a Seicho-no-Ie, um movimento filosófico que valoriza a família, a gratidão e Deus. Bem a cara da minha mãe.
Mas minha mãe não era uma profissional qualquer. Era meio coach, meio guru, meio terapeuta, sei lá, porque muitas clientes preferiam ir a casa dela ao invés do salão. E lá o papo corria solto. Conversa vai, conversa vem, minha mãe, habilidosamente, cuidava dos pés, das mãos e da cabeça das clientes.
No meio desse roteiro, ela se separou do meu pai ou vice-versa. Não sei ao certo. Só sei que foi o melhor para ambos, pois o ambiente doméstico estava insustentável. Mas ela nunca deixou de amar o seu Antônio, meu pai, isso eu posso garantir.
Minha mãe era do tipo empreendedora. Sempre ousada. Vaidosa. Gostava de joias. Nem sei como ela se virava pra pagar tudo que comprava, porque ela sabia que eu ia dar uma bronca, mas daí ela soltava aquele sorriso simples e aquele olhar doce e catapimba! Eu deixava barato. Mas um dia ela extrapolou. Quando entrei na faculdade de jornalismo da FAAP, em 1971, ela estava tão feliz, que resolveu me dar um presentão. Tão mesmo! Era um belo e impávido Simca Chambord, creme e vermelho, que estava estacionado em frente ao nosso apartamento, na rua Apiacás, nas Perdizes. Quando ela me mostrou quase caí de quatro: nem carta de motorista eu tinha! E aí veio aquela pergunta mortal: quanto custou e como a gente vai pagar? Ela respondeu daquele jeito de sempre: eu dou um jeito. Dessa vez eu não amoleci e ela acabou devolvendo o carro, para felicidade geral da nação!
Mãe é assim: não te dá apenas a mão. Te dá um carro! O quê fazer? Não dá pra reclamar de quem trabalhou a vida inteira, te ajudou a pagar a faculdade, o chopp, as baladas e tantas outras coisas. Reconheço que o DNA empreendedor eu herdei dela, muito cedo. Eu e alguns amigos entramos para o negócio da noite: promovíamos bailinhos na zona oeste para ganhar uma grana e ajudar a pagar as contas. E segui nessa balada, tempos depois: virei dono de bar. De uma dúzia deles.
Dos anos 90 até 2005 eu morei em Floripa com a Laine e meu segundo filho, Luiz Felipe. O Gabriel, mais velho, morava com a mãe, Cláudia, em São Paulo. Por conta do trabalho da produtora, eu ia muito a Sampa e encontrava minha mãe para um papo e uma pizza. Eu vinha ver o filho, ela via o neto. Um dia, combinamos a janta de sempre. Cheguei na casa dela, toquei a campainha e nada. Imaginei que ela estava atendendo alguma cliente fora de hora. Nada disso. Ela estava tendo um AVC e não conseguiu atender a porta. Daí pra frente, vocês podem imaginar o desfecho.
Fiquei junto dela alguns dias numa ala do Hospital Albert Einstein. Ela estava com morte cerebral, mas os aparelhos faziam seu coração bater e o pulmão funcionar. Parecia dormindo. Uma tarde o médico se aproximou de mim: “Ricardo, não há o que fazer. Nesse estado os órgãos começam a definhar e o fim é inevitável”. Pedi um tempo e ele saiu da sala.
Peguei na mão da minha mãe pela última vez.
FOTO DE CAPA: Unsplash/Alex Pasarelu
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