Artigo

Meu 25 de abril

E com a chegada do 25 de abril, resolvi escrever sobre liberdade, é um dia histórico, incrível, importante e revolucionário, por isso tive a ousadia de escrever sobre a trajetória da conquista da minha liberdade e autonomia.
Antes de migrar, eu estava lecionando no Brasil, deixei quase 700 alunos para trás, sendo que comecei a atender 300 em sistema de ensino à distância pela universidade para a qual eu trabalhava.
Migrando vieram os medos, inseguranças, incertezas, solidão. Amigos, parentes e familiares ficaram em meu país.
Quando eu cheguei à Portugal na minha cabeça eu já “tinha” uma vida estável, dois filhos adolescentes, um casamento de 18 anos.
Assim que cheguei, eu, que tinha dificuldade para engordar, ganhei mais de 10 quilos em pouco tempo, só percebi isso no dia em que fui comprar roupa e observei meu corpo no espelho de 360° graus, eu olhava, mas não me reconhecia, era muita roupa de frio, não sabia o que vestir, achava que minhas roupas não estavam de acordo comigo, com minha idade, com o clima, rsrrsrsrs.
Eu não me olhava muito no espelho em casa, apesar de sempre ter o costume de estar arrumada, eu fazia isso sem olhar no espelho, era tudo feito no automático.
Percebi aos poucos que aqui eu estava saindo do automático, comecei a trabalhar com algo diferente, percebi que não queria mais estar casada, percebi que a minha opinião não estava mais fazendo tanto sentido para meus filhos, q estavam ficando adultos, percebi que tudo que eu achava que tinha, eu não tinha, nem a mim mesma eu tinha, eu estava perdida de mim mesma.
A sensação de orbitar e não de viver veio como um raio, muita gente que me conheceu na época em que aqui cheguei diz que hoje não me reconhece mais, que bom, porque agora sinto que vivo, não que orbito.
Durante a separação também percebi que me olhavam diferente, os comentários eram outros, senti que para essas pessoas eu tinha perdido uns 70% do meu valor. O tal capital marido? Eu tinha perdido. Eu era agora migrante, brasileira e com uma idade que para muita gente significava que eu faria qualquer coisa para arrumar um novo marido, claro que português, na cabeça desse gente, hahahhaha, fazer qualquer coisa, porque para essa gente, meu valor de “mercado” tinha diminuído…
Lembro claramente do dia em que fui a um clube de tênis, uma mulher que me conheceu casada diz: cadê sua aliança?
Eu respondi que já não estava casada, ela olha para mim e fala: acho melhor continuar a usar aqui no clube, porque agora você está disponível, então você é uma ameaça.
Agora eu tinha quilos a mais, sinais claros de que o tempo tinha passado, sendo vista como disponível e ameaçadora, rrsrsrrss, em um país que não era o meu.
Em uma crise de ansiedade no meu trabalho, eu fui parar no hospital, afinal eu tinha começado a chorar no meio do escritório, com mais de 200 pessoas ao redor, pressão arterial ficou alta, chamaram a ambulância, achei que era coração, ia morrer ali, o médico de plantão veio com os resultados do exame nas mãos, diz que não há nada fisicamente, pergunta sobre um pouco sobre minhas preocupações, ele já tinha mandado um medicamento para eu dormir e tudo mais.
Quando eu acordei, vi que talvez eu não quisesse passar por tudo aquilo dormindo, queria estar acordada! Sentir o que precisa sentir, dor, paixão ou seja lá o que fosse.
Comecei a focar nos meus privilégios, em como eu estava trabalhando, tinha conseguido estudar, migrar, criar os filhos, foquei em mim mesma e passei também a observar e contestar coisas que falavam diretamente para mim.
Afinal eu não era DISPONÍVEL, não, eu era minha, de mais ninguém, sobre ser ameaça, talvez eu seja mesmo, não uma ameaça às famílias (que frágeis esses maridos roubáveis), eu era uma ameaça aos hipócritas, aos críticos, porque com o passar do tempo em não queria agradar a ninguém, só a mim mesma, se eu emagreci, por exemplo, foi porque eu estava acordando e fazendo várias coisas das quais eu gostava, voltei a nadar, dançar, andar de bicicleta, transar (é minha gente, em alguns casamentos se para de transar, ninguém me avisou).
Aqui em Portugal confesso que é mais “fácil” passar dos 40, do que no Brasil, Rio de Janeiro. Vi e convivi com muitos casais com diferença de idade de mais de 10 anos aqui, sendo a mulher mais velha, sendo a relação principal, aqui se fala mais amadurecimento, do que envelhecimento. Claro que há questões aqui sérias sobre envelhecimento e bem estar, aposentadoria, reformas, falta de assistência aos mais velhos, eu ainda não cheguei aí, claro que isso me assusta um pouco, vou vivendo e aprendendo como lidar com isso.
Sobre a maneira como sou tratada por homens mais novos…óbvio que eu já percebi homens mais novos que acham que por serem mais jovens eu estarei disponível para eles a qualquer momento (o capital deles é esse: serem jovens), mal sabem que quanto mais velha, mais “chata” e seletiva eu me tornei. Uma amiga até questionou se eu não deveria abrir meu horizonte, porque tenho um perfil muito restritivo, rsrsrsrs, quem me conhece…sabe, mas eu vou fazer o que eu quero, com quem eu quero e na hora que eu quero, não tenho medo de dizer que quem escolhe sou eu, não por me achar a mais gostosa, mas por saber o que eu quero e por respeitar quem eu me tornei, se eu não quiser ninguém, só ver Netflix ou jogar Brawlhalla no Nintendo numa sexta-feira eu vou! Se eu perceber que vale a pena casar de novo, eu vou.
A vida é curta e cada momento único, ninguém devolve seus anos de vida passados, cada dia que se vive é um dia mais perto do meu fim, valorizo cada segundo, meus aniversários são Fláviapaloozas, mesmo se eu ficar em casa, na minha cabeça, é o dia mais incrível.
Esse texto não é triunfalista… cheguei a ter relacionamento com homem dez anos mais novo, curti, fui traída, sofri, chorei, comi chocolate e falei pra mim mesma: véia ridícula, hahahhaha!
Povo, tenho 46 anos, canto funk carioca, fiz apresentação num Carnaval em Lisboa, 5 mil pessoas assistindo, eu vestida de mulher-gato, vc acha que eu me importo com a opinião de alguém?
Vc que escreve mensagem falando: nossa, vc nem liga para colocar foto com suas gordurinhas extra de biquíni…Gata, não vejo gordura, o que vc vê de celulite eu vejo gostosa em braile e segue o baile.
Tenho mapas inteiros nas minhas pernas depois da gravidez dos meus filhos, se fiz tratamento? Fiz, ajudou sim, mas eu continuo com o mapa Mundi todinho aqui, rsrsrrsrs, só é bem lido por especialista…🤣
Acha que eu ligo se me chamam de coroa? 👑 É até bom, sou realeza, mulher brasileira chegando a meio século! Viva o dia da Liberdade e viva a liberdade de ser o que se é.

Flávia Beck – Escritora, formada em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduada em Comunicação e Saúde pela FIOCRUZ, mestranda em Antropologia pela Universidade de Lisboa. É hiperativa, tem dois filhos adolescentes, mora em Portugal e nas horas vagas canta.

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Comments (2)

  1. Gente! Mas é uma Maravilhosa! Maravilhosa mulher e maravilhosa reflexão!
    Quanto sentimentos e quantos sentimentos de liberdade e de pertencimento!
    Parabéns!
    Acredito que mesmo o Rio com toda `liberdade´ que dizem ter , ainda valorizam somente a Garota de Ipanema. Vejo que ainda falta educação para o envelhecimento em nosso país e quando vejo alguém que pensa como EU…Rsrsrsrs
    Respiro e sigo feliz! Aos meu 48 anos ,solteira , sem filhos e cursando dois bacharelados e pensando: Estar e ser sozinha na maturidade é enormemente gratificante! VIVA! Viva muiiittooo!

  2. Márcia, bem vinda, TMJ, curtindo a nós mesmas nas nossas MaravilhosIdades!

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