Artigo

Morrem Devagar os Deuses que Esquecemos!

Ninguém se despede deles!. Não há velórios, nem lágrimas públicas, nem quaisquer homenagens!!. Só o esquecimento – lento, viscoso, terminal – a consumir-lhes os dias até ao silêncio absoluto.

Em apenas três anos, 757 idosos morreram sozinhos em centros urbanos portugueses. E são muito poucos os cidadãos portugueses que ficaram verdadeiramente indignados com este número.

Um número, absolutamente cru, áspero que mais parece ser apenas o simples resultado de uma qualquer vulgar estatística. Mas, sei-o bem, é na verdade uma sentença!!. É um número que não devia existir. Mas, existe! Esta é a prova de que continuamos a erguer cidades cemitério em vida e de que transformámos as pessoas mais velhas – aqueles que nos pariram, nos ensinaram, nos alimentaram, nos protegeram – em sobras orgânicas de uma sociedade numa convulsão afetiva. E não me desculpo com esta escolha intencional das palavras!

A narrativa dominante sobre o envelhecimento é uma tremenda falácia compassiva: fala-se com muita frequência no ´envelhecimento com dignidade` como se bastassem apenas as casas de repouso (ou o que lhe quiserem chamar!), a medicação e a acessibilidade nos passeios. Para muitos a questão é só de habitação ou da falta desta! Mas não é a dignidade o que falta às pessoas mais velhas que morrem sozinhas.

É a presença. É o humano!!. É a confirmação de que ainda pertencem a uma história que os legitimou enquanto pais, trabalhadores, amantes, vizinhos. Não é a falta de cuidados clínicos que os mata. É o deserto emocional!. É a ausência de um olhar!!. Morrem sem que ninguém os nomeie. Sem que alguém saiba onde está o corpo – ou a história – de quem um dia foi tudo para alguém!!.

E se o silêncio que os envolve é atroz, mais atroz ainda é a normalização deste silêncio!!. As cidades tornaram-se habitats anti-humanos, onde o tempo é o produto e o afeto um mero luxo. Vivemos todos a poucos centímetros uns dos outros, mas a anos-luz de uma distância afetiva. Um idoso pode cair morto num terceiro andar de Lisboa e só ser descoberto quando o cheiro vaza por debaixo da porta. Este é o estado da nossa civilização!. Esta é a coreografia da morte urbana: a solidão elevada à sua forma mais obscena, legitimada pela pressa, adornada por alguma comiseração esporádica e pontuada por operações policiais que tentam – sem nunca conseguir – remendar a amputação ética de um mundo sem raízes!!. Desculpem a crueza das minhas palavras. Mas, perante uma realidade tão cruel, não consigo ser indiferente e, diga-se também, já não tenho paciência (confesso, nem vontade!) para continuar a escolher apenas as palavras que não ferem os que ficam sempre mais indignados!!

Bem pelo contrário. Importa antes dizer com uma efetiva crueza: o que está a acontecer não é apenas solidão acidental, é antes eutanásia social não declarada!!. Sim, leram bem, escolhi cada uma destas palavras. Suavizá-las com uma linguagem politicamente correta é antes perpetuar ´o crime` (claramente entre aspas).

Estas mortes são lentas, cometidas por uma omissão que é essencialmente de natureza coletiva. As nossas pessoas mais velhas morrem com uma faca romba da nossa negligência, com o ácido do nosso desinteresse coletivo e com a anestesia moral da ´falta de tempo`. E mais grave: convencemo-nos de que é inevitável. E este é, na verdade, o verdadeiro abismo!!.

Mas importará saber: como é que chegámos aqui? Há uma génese estrutural que não pode ser ignorada. A economia neoliberal empurrou a velhice para as margens, como se fosse uma anomalia. Não produz? Elimina-se. Não consome? Invisibiliza-se. O valor do ser humano foi indexado à sua produtividade e tudo o que não gere lucro é apenas ruído logístico. Reformado é sinónimo de obsoleto!. Esta linguagem, insidiosa, permeia os discursos institucionais e corrói o nosso tecido moral. As nossas pessoas mais velhas são tratadas como custos – no SNS, na Segurança Social, nos orçamentos familiares. Mas um povo que contabiliza as suas pessoas mais velhas como fardos é um povo que não sabe mas já está extinto na sua essência.

 

E não se pense que isto é uma tragédia dos pobres. A morte solitária não escolhe classes. Escolhe anonimato!. Escolhe a ausência de vínculos!!. Pode perfeitamente morrer sozinho um antigo engenheiro com uma pensão confortável, se a vida lhe tiver sido um contrato funcional e não uma teia de relações!. É é este vazio relacional que mata, não a pobreza. E este vazio alastra-se como uma pandemia emocional, com epicentro nas metrópoles onde o elevador substitui a escada e a campainha é um som que assusta.

O que sobra, então? Sobra o Estado – mas um Estado asfixiado, lento, cronicamente reativo. Sobra a PSP a bater portas como último elo da humanidade institucional. Sobra uma operação chamada ´A Solidariedade Não Tem Idade`, cujos números, paradoxalmente, denunciam o contrário:

centenas de idosos sinalizados em risco extremo, dos quais muitos continuarão a desaparecer sem alarme!. Sobra também o medo: o medo de todos nós, que adivinhamos neste espelho negro o reflexo do nosso próprio destino.

Porque esta história, que fique bem claro, não é sobre eles. É sobre nós!!. Sobre o tipo de velhice que estamos a construir. Sobre o tipo de juventude que a antecede. Sobre o tipo de mundo que decidimos delegar – não aos nossos netos, mas a nós próprios, no tempo em que deixarmos de ser úteis, desejáveis, celebrados!.

As pessoas mais velhas que morrem sozinhas em casa não são uma exceção. São a vanguarda de um modelo social que, se não for travado, nos irá devorar a todos na curva descendente das nossas vidas.

Mas, reverter esta lógica exige muito mais do que a habitual empatia: exige antes uma ruptura!!. Exige fortes redes de vizinhança reconstruídas com uma clara e objetividade e intencionalidade políticas.

Exige um novo léxico urbano onde o cuidado seja o verbo da nossa ação pública e privada. Exige um diversificado conjunto de programas habitacionais que misturem gerações, cidades desenhadas para encontros e não para o isolamento funcional.

Exige que a televisão deixe de ser o confessor dos últimos dias e que existam um conjunto de políticas culturais e comunitárias que devolvam às pessoas mais velhas ao palco central da nossa existência.

Porque, no fundo, há uma verdade atávica que nos esquecemos: as pessoas mais velhas são os deuses que nos criaram. Ignorá-los é apagar o altar da nossa própria identidade!. E quando todos os altares forem derrubados, só restará o vazio – uma sociedade sem passado, sem memória e, inevitavelmente, sem futuro!.

Que este texto simples não seja mais um lamento entre tantos outros. Que seja a ferida!. Que seja incómodo!. Que seja, talvez, um grito!!.

Porque enquanto for possível escutar o eco de quem já não está, talvez ainda haja a esperança de que um dia, ao cair a noite, alguém bata à nossa porta – não para nos encontrar mortos, mas para nos lembrar que ainda estamos vivos!!.

 

Fonte: Morreram 757 idosos sozinhos em casa nos centros urbanos nos últimos três anos

 

Sérgio S.

Administration # Executive & Technical Director # Health Advisor # National Instructor | RN & Nursing Education Specialist # PostGraduate & Master´s in Health Services Management # PostGraduate Public Policy Evaluation.

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