Em 1989, um exemplar rasgado da revista Newsweek foi parar a uma pequena vila nos arredores do deserto de Kalahari e caiu nas mãos de um professor de inglês que estava a morrer de saudades de casa. A revista tinha o obituário de um escritor chamado Bruce Chatwin que, após vários anos de longas viagens, faleceu aos 48 anos devido a uma doença rara contraída durante uma das suas aventuras. O artigo contava a história lendária de como Bruce tinha deixado o seu emprego em Londres, enviando ao seu chefe um telegrama que dizia simplesmente: “Fui para a Patagónia”, decisão que o colocou no trajeto de uma ilustre carreira como escritor de viagens e romancista.
Vários meses depois, o professor de inglês estava a fazer uma longa viagem de autocarro, quando o passageiro ao seu lado, um jovem viajante francês, lhe falou sobre um cineasta alemão chamado Werner Herzog, cineasta que tinha solicitado à sua equipa de filmagens para transportar um navio a vapor por uma colina na Amazónia, para filmar uma cena de um filme chamado Fitzcarraldo. Werner acabou por participar num documentário que falava sobre a realização desse filme.
O professor de inglês era eu, e foi assim que tomei conhecimento sobre dois dos contadores de histórias mais originais do século XX. Desde então, os livros de Bruce Chatwin e os filmes de Werner Herzog foram absorvidos pelas profundezas da minha imaginação, estimularam as minhas próprias viagens e ajudaram na minha escrita. Até hoje, uma cópia enrugada de O Canto Nómada de Bruce Chatwin (a sua exploração da forma sagrada de contar histórias dos aborígenes) nunca está longe da minha secretária. E a simples menção de ursos-pardos evoca o assombroso Grizzly Man de Werner Herzog (um documentário sobre a obsessão fatal de um homem por ursos do Alasca). E mesmo enquanto releio os parágrafos de abertura deste artigo, fico um pouco envergonhado por reparar nos ecos de uma história de Bruce Chatwin ou de um argumento de Werner Herzog. Mas esse é o poder dos grandes contadores de histórias – as suas vozes distintas ficam embebidas no seu público.
As fontes das histórias cativantes de Bruce Chatwin e Werner Herzog foram claramente as suas viagens. Ambos tinham tendência para desaparecer, muitas vezes durante semanas, ou durante meses, seguindo as suas curiosidades sem fim até aos cantos mais remotos do planeta – os mares de areia do Saara, as fortalezas montanhosas do Hindu Kush, as pastagens intermináveis da Estepe Eurasiática, os desertos fustigados pelo sol no interior australiano. Na verdade, foi na Austrália que os seus caminhos se cruzaram pela primeira vez em 1983. E permaneceram em contacto até à morte de Bruce Chatwin, que mais tarde se revelou ser de VIH/SIDA.
Para o 30º aniversário da morte do escritor, a BBC pediu a Werner Herzog, agora com 77 anos, que fizesse um documentário sobre o seu velho amigo. Nomad: In the Footsteps of Bruce Chatwin está disponível para streaming desde 26 de agosto.
Conversei recentemente com Werner Herzog através da aplicação Zoom. Herzog estava na sua casa em Los Angeles, de onde falou sobre a sua amizade singular com Bruce Chatwin, a beleza de viajar a pé e por que razão interpreta bem o papel de vilão em frente às câmaras.
Como é que conheceu Bruce Chatwin?
Conhecemo-nos em 1983, em Melbourne, na Austrália. Eu estava nas últimas semanas de pré-produção da longa-metragem Where the Green Ants Dream. Ele estava na Austrália a promover um dos seus livros. Entrei em contacto com a editora dele, e eles disseram que ele estava algures no interior australiano. Eu disse que, se por acaso ele entrasse novamente em contacto com eles, para lhe dizerem que eu estava à procura dele.
Eu não sabia que Bruce Chatwin conhecia sequer os meus filmes, mas na altura ele andava com o meu livro, Of Walking in Ice, na mochila. O livro é sobre uma viagem que fiz a pé de Munique para Paris no início do inverno.
Ele telefonou-me alguns dias depois e concordou em encontrar-se comigo em Melbourne. Eu perguntei: “Como é que o reconheço?” E ele disse: “Eu sou alto e loiro. Pareço um estudante e uso uma mochila de cabedal”. Mal nos cumprimentámos. Começámos logo a contar histórias um ao outro. Foi uma maratona de 48 horas a contar histórias.
Que tipos de histórias contaram um ao outro?
Falámos sobre viajar a pé. E compreendemos de imediato que, enquanto viajantes, andávamos a pé, e mais ninguém o fazia. Claro, havia pessoas que andavam com mochilas, mas essas pessoas carregavam a casa às costas: a tenda, os utensílios de cozinha, tapetes e saco-cama. Tudo e mais alguma coisa. Mas nós não. Tínhamos apenas o necessário. Isso forçou-nos a estabelecer ligação com o mundo.
Quando viajei a pé de Munique para Paris, o meu cantil já estava vazio às 10 da manhã. Estava muito calor e um tempo seco. Não havia um único riacho, rio ou torneira em qualquer lugar. Nada. Por volta das 5 da tarde, quando eu estava com muita sede, tive de bater à porta de uma casa numa quinta. Quando a esposa do agricultor abriu a porta, eu simplesmente perguntei se ela podia encher o meu cantil. Mas as pessoas reconhecem instantaneamente algo de especial nas pessoas que viajam a pé. Eu fui convidado a entrar e eles contaram histórias sobre as suas vidas que não tinham contado a ninguém. Portanto, esse era o tipo de viagem que ambos fazíamos.
Não poderia ter experiências dessas sem caminhar? Por que razão caminhar é tão importante para si enquanto meio de viajar?
Foi assim que fomos feitos enquanto homo sapiens. Somos biologicamente construídos para percorrer distâncias a pé. Foi isso que fizemos durante dezenas de milhares de anos até começarmos a usar cavalos e, como é óbvio, até à era mecânica. E eu não chamaria a isto “caminhar”, porque não é sair para dar um passeio, ou sair para uma “caminhada energética”, ou para passear pela nossa cidade. É “viajar a pé”. Estamos a ler o mundo, a aprender a essência do mundo. Bruce Chatwin gostou sempre do meu ditado: “O mundo revela-se aos que viajam a pé”.
Bruce Chatwin não parecia escolher lugares interessantes para visitar, parecia mais perseguir ideias que o levavam a lugares interessantes. Esta abordagem foi algo que teve eco em si?
É uma atitude de curiosidade. É a nossa noção do que é essencial. É a nossa noção do absurdo. Por vezes, é uma visão do mundo que molda uma visão do mundo. Ele tinha isso nele. E reconhecemos isso um no outro porque, de certa forma, eu tenho isso em mim. Veja, por exemplo, o livro Conquest of the Useless. É um livro que você devia ler.
O livro fala sobre as suas experiências na Amazónia a filmar Fitzcarraldo.
Não é um livro sobre a realização de um filme. É sobre sonhos febris na selva. Enfrentámos catástrofes todos os dias. E quando falo de catástrofes, refiro-me a catástrofes reais. Tivemos dois acidentes de avião. Deparámo-nos com uma guerra na fronteira entre o Peru e o Equador. E noutro incidente, o meu acampamento para 1.100 pessoas foi atacado e completamente queimado. E assim por diante, dia após dia, enquanto eu movia um navio pela montanha.
Muito do seu trabalho concentra-se em personagens, tanto reais como fictícias, que são obcecadas por um tema ou objetivo. Bruce era uma dessas personagens? Quer dizer, alguém que estava obcecado com o que estava a fazer?
Não, creio que obsessão não é a palavra correta, mas ele tinha uma curiosidade profunda, existencial, pelo mundo. Ele seguiria uma linha, e não seria impedido de perseguir essa linha e de a desvendar.
Como é que a morte de Bruce o afetou? E será que afetou a abordagem que tem ao seu trabalho?
Quando Bruce estava no seu leito de morte, telefonou-me para o ir visitar. Ele queria ver o meu novo filme sobre as tribos nómadas Wodaabe do sul do Saara, que eu tinha acabado de terminar. Levei o filme, mas foi um choque porque ele estava demasiado ocupado a morrer. Ele estava inconsciente a maior parte do tempo, mas tinha momentos de lucidez e dizia para eu lhe mostrar o filme. Eu tinha um pequeno projetor. Mostrava-lhe 10 minutos do filme, e depois ele entrava em coma novamente.
Foi assustador ver um homem como ele a morrer. Ele falava sobre as suas pernas: “A minha menina da esquerda está a doer. Podes reorganizar as minhas pernas?” As pernas eram apenas ossos. Ele era um esqueleto e o seu rosto já não estava lá. Tinha apenas olhos brilhantes no crânio.
Ele gritava nos momentos em que tinha alguma lucidez. “Eu tenho de ir para a estrada novamente. Eu tenho de estar na estrada novamente. A minha mochila é demasiado pesada.” E eu disse-lhe: “Bruce, posso carregar-te. Eu sou forte. Eu serei a pessoa que carrega a tua mochila.” E isso acalmava-o. E depois via mais 10 minutos de filme. Eventualmente, viu o filme todo.
Ele tinha vergonha de estar a morrer à minha frente – porque estava a apenas 48 horas de morrer realmente – e pediu para eu me ir embora. Ele disse-me que eu devia ficar com a mochila dele. Era eu quem a devia carregar. Mais tarde, a sua esposa enviou-me a mochila. Não é um símbolo nem um tipo de presente simbólico. Eu uso a mochila até agora.
Na Patagónia, quando eu estava a filmar Cere Torre, fui atingido por uma tempestade de neve numa serra e ninguém nos podia ajudar. Éramos três homens e tivemos de escavar uma pequena caverna no gelo que não era muito maior do que um grande barril. Fiquei sentado na mochila dele, que levei comigo. Não tínhamos sacos-cama, tendas, cordas, equipamento de alpinismo, nada. Durante 55 horas, ficámos presos pela tempestade, e durante 55 horas fiquei sentado na mochila dele. Foi bom porque eu teria perdido mais temperatura corporal se estivesse sentado no gelo.
É uma coisa prática para mim. Está num pequeno armário ao lado da minha rede mosquiteira e do meu cantil. Tem apenas as coisas essenciais de que preciso.
Quando viaja, o que leva na mochila?
Na mochila de Bruce Chatwin levo um segundo par de roupa interior, meias e escova de dentes, apenas o essencial. Um cantil. Ando sempre com um par de binóculos. E um caderno e uma caneta. Cadernos minúsculos que cabem no bolso da minha camisa para eu conseguir ter acesso imediato. Eu escrevo em miniatura. Por vezes escrevia enquanto caminhava. É uma caligrafia um bocado feia, mas ainda a consigo decifrar.
O que acha que Bruce teria pensado sobre este momento na história em que as viagens foram quase totalmente interrompidas?
Não sei. Ele provavelmente teria gostado, porque ele era contra o turismo e o turismo está a destruir demasiadas culturas. Eu tenho um ditado: “Turismo é pecado e viajar a pé é uma virtude”. Ele gostava deste ditado. E agora o turismo está severamente restringido.
O que pensa sobre bucket lists (listas de desejos)?
Não tenho uma bucket list porque nunca planeei nada.
Como teria Chatwin lidado com as “fake news” e os debates sobre quem controla a narrativa de um lugar?
Ripostava com histórias ainda melhores.
Como foi revisitar alguns destes lugares muito tempo depois de Bruce ter estado lá, particularmente a Patagónia e a Austrália?
É deprimente. Sempre que revisito localizações dos meus filmes, é completamente deprimente. Não sei porquê, mas toda a magia de um lugar desaparece porque a articulámos em imagens que são de alguma forma uma entidade separada que reflete um brilho escuro de beleza imposto por imagens ou prosa. Tento evitar revisitar as localizações dos meus filmes.
Fiquei impressionado com uma cena no início de Nomad onde turistas na Patagónia tiram uma fotografia com a estátua da preguiça gigante na caverna que Bruce Chatwin tornou famosa. O que acha que ele teria pensado sobre este lugar se tornar numa espécie de atração à beira da estrada?
É difícil fazer uma apreciação. Ele descreveu a caverna e tornou-a conhecida para o mundo. Não creio que ele tenha imaginado que o seu livro [In Patagonia] tivesse este tipo de repercussão e que atrairia tantos turistas. E claro, nós dois fomos sempre contra o turismo de massas.
Com todas as restrições nas viagens, ainda tem projetos em lugares remotos?
Há um projeto que tenho de fazer numa ilha das Filipinas, uma longa-metragem. Mas de momento não posso viajar. Não me posso aventurar com uma câmara.
Os meus filhos nunca me iriam perdoar se eu não fizesse uma pergunta sobre o seu recente papel – “O Cliente” – em The Mandalorian. Há alguma probabilidade de você aparecer em mais filmes Star Wars? Acho que você dava um vilão perfeito.
Eu sou ainda mais malvado em Jack Reacher [risos]. Para eu me envolver como ator num filme, são necessários alguns critérios. O argumento precisa de fazer sentido. O calibre dos cineastas tem de ser elevado. E eu preciso de saber se serei bom para o papel, e que o consigo desempenhar. Como vilão, nunca falho. Mas nunca me irão encontrar numa comédia romântica.
Nota editorial: Esta entrevista foi editada por motivos de extensão e clareza. A The Walt Disney Company é proprietária maioritária da National Geographic Partners.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site nationalgeographic.com.
FONTE: https://www.natgeo.pt/
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