Artigo

O que seria de nossos Carnavais sem o olhar experiente dos idosos das Velhas Guardas?

A avó de minha infância ainda existe porque eu tive tempo de observá-la: ela passou a existir em mim

Maria Ricardina, minha avó, conhecida por todos como tia Neném, sempre teve uma saia rodada e uma alma cintilante. Ela e meu avô, o Tião Marceneiro, eram figuras conhecidas no largo do Serrão, aqui em Niterói. Eles povoaram minha infância e juventude. Me fizeram sonhar.

Vovô nasceu ali naquela casa humilde, mas de chão dadivoso. Em seu gosto pelas plantas, minha avó fez-me conhecer e cultivar mudas incomuns: patchuli, malva-maçã, bogari, assim como as medicinais jurubeba, canforada, arnica… Vejam por onde entram as tradições, a cultura.

Nesse ambiente eleito, nasceram os filhos Teresa, Sebastião e Lurdes, minha mãe.

Minha avó sempre foi totalmente empolgada com os festejos carnavalescos. Repetia sempre ter sido ela a criar a Ala das Baianas, a mais mágica nos desfiles.

Com a pressão do amor, ela passava os três meses que antecediam a festa nos preparativos de fantasias criativamente elaboradas: arlequins, bailarinas, baianinhas e gregas, que a cada ano eram inovadas.

Enérgica e suave em seu gosto por fantasias e enfeites, fez-me conhecer e identificar tecidos, miçangas e todo tipo de adereços usados nos festejos.

Sua casa, na rua Ipiranga, possuía vários cômodos e uma grande varanda. Destacava-se das demais por ser uma extensão do terreiro do samba, local ideal para receber suas ilustres amigas com faustoso lanche regado a cafezinho, bolo de fubá e deliciosos manjares. O assunto girava sobre Carnavais passados, e eles encerravam sempre a prosa com a frase “não se faz mais Carnaval como antigamente”.

A afinidade: na folia, criavam laços de força ancestral. Mulheres baobás. “Aqui é uma comunidade, tudo uma parentagem só”.

No dia da folia, o ritmo era frenético, colares, pulseiras, brincos, saias cuidadosamente engomadas, muito pó de arroz, batom carmim e sebo nas canelas. Samba decorado, passos marcados, alegria contagiante. A avenida, o palco iluminado. Universo do samba.

A passagem dos anos deu a tia Neném, minha avó, o aspecto de uma bela, preciosa antiguidade. Exalando a força vital de toda uma raça em seus ideais de liberdade. A bata branca de cambraia sobre a saia estampada muito engomada eram traços de vivências de sua geração. Cabelo partido ao meio, negro e ondulado, escondia nos bandós os fios brancos. Sempre de brincos de argola de ouro, presente de casamento de meu avô.

 

Lia Vieira

Escritora e coordenadora da área de questões do envelhecimento da mulher negra no Centro Internacional da Longevidade (ILC) no Brasil

 

FOTO DE CAPA: Ala das baianas da escola de samba Inocentes de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, em 2013 – Danilo Verpa/Folhapress

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