Artigo

ORGULHO EM LIMPAR CUS

Não vou falar dos rabos que os jovens “ativistas” decidiram mostrar numa das iniciativas da celebração dos 50 anos do Partido Socialista. Não o faço pela falta de pertinência e de originalidade da ação. Sou da Geração a quem Vicente Jorge Silva apelidou de “Geração Rasca” e que, isso sim, se verificou ser uma “Geração à Rasca”. Recordo-me bem das nádegas que permitiram juntar as sílabas da frase “Não Pago”, numa luta, inglória, contra as propinas. A luta contra as alterações climáticas é justa, pertinente e urgente e requer força, coerência e originalidade. Episódios como este ou o das jovens que decidiram atirar sopa num quadro icónico de Van Gogh, na National Gallery, em Londres, não são benéficos para uma causa que é de todos nós.

Vou falar-vos de Felisa Pérez Segovia que, como noticiou o The Huffington Post, deu uma lição de humanidade, humildade, dignidade e profissionalismo, na sua conta do Twitter @mgicafe, a todos aqueles que, recorrentemente, descrevem a sua profissão com a expressão: “Tu trabalhas a limpar cus”. A auxiliar de ação direta decidiu responder e tuitou: “Sinto orgulho em limpar cus, tenho orgulho no meu trabalho! Sim senhoras e senhores, orgulhosa de limpar cus, cortar unhas, lavar cabeças, vestir, dar banho, alimentar e cuidar de pessoas entre outras coisas, sim, sim pessoas que não podem fazê-lo sozinhas e necessitam de ajuda. Mas vamos resumi-lo a limpar cus.”

As tarefas ligadas aos cuidados – informais ou formais – não têm qualquer reconhecimento social. Se há profissão não valorizada socialmente é, sem sombra de dúvida, a de auxiliar de ação direta que presta cuidados, por exemplo, nos lares de idosos, tecnicamente designados como Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI) ou nos Serviços de Apoio Domiciliário (SAD). Este grupo de pessoas, constituído maioritariamente por mulheres, é designado, pela catedrática em sociologia María Ángeles Durán, como “Cuidatoriado”, uma classe social emergente com poucos direitos. Os cuidados, em Portugal, são garantidos principalmente pelas famílias. Muitas destas mulheres, concretamente as cuidadoras informais, estão privadas de remuneração e poderão beneficiar de uma proteção social pífia (agora prevista no Estatuto do Cuidador Informal) e encontram-se na ou perto da pobreza e da marginalização. Quando falamos de cuidadoras formais / profissionais o cenário também não é bom, as remunerações são baixas, o esforço físico e psicológico que lhes é exigido é enorme e pouco ou nada são valorizadas pelas suas entidades patronais e pelas famílias das pessoas de quem cuidam. Claro que há exceções de aplaudir, as tais que confirmam a regra de fugir. Com as dificuldades crescentes nos processos de recrutamento, o panorama não se afigura risonho. Estas cuidadoras ainda não têm consciência de classe. A comunidade precisa, fruto do envelhecimento da população, cada vez mais destas pessoas. É fundamental dotá-las de consciência de classe para que se assumam como um grupo que cumpre uma função importantíssima e que deve ser respeitado como tal.  

Felisa Pérez Segovia, nos seus tuites, dispara:

“É evidente que nem todos servimos para tudo. Eu por exemplo não poderia trabalhar em algo que me exigisse mentir, como um banqueiro, político ou algo deste estilo. Essas profissões são muito valorizadas.”

Eu digo-vos que a maioria que nos classifica assim, espero que nunca necessitem que alguém vos ‘limpe o cu”. Mas, se chegar o momento em que seja necessário, qualquer uma das minhas companheiras que são profissionais, ou eu, estaremos dispostas a ajudar-te e fazer tudo para que tenhas a melhor qualidade de vida possível e sempre com bom humor e amor”.

Todos nós, em algum momento das nossas vidas, fomos ou seremos cuidados por alguém. Por outro lado, também é expectável que cuidemos de alguém, de um familiar ou amigo.

Considero, defendo-o cada vez com mais afinco, que é urgente mudar o paradigma dos cuidados em Portugal. Temos que dar melhores condições a quem decide cuidar dos seus entes queridos e garantir uma formação e remuneração ajustadas a quem se dedica profissionalmente à prestação de cuidados. Repito, sabendo que “vozes de burro não chegam ao céu”, mas certo de que só é derrotado quem desiste, não é razoável continuarmos a gastar milhões em equipamentos e não serem investidos tostões em formação e no capital humano. 

José Carreira 

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