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PODCAST EM DESTAQUE: “A SOPA DE AMANHÔ

Por vezes, chego à Courense ainda mais cedo do que o muito cedo a que chego sempre e aproveito a mesa de todos os dias para uma leitura mais cuidada dos jornais ou para um avanço no livro que me ocupe na ocasião. Mas o melhor é a conversa com o senhor Manuel, sobre o que calhe, os dias em que ali podia entrar o Mário Viegas ou Magalhães Mota, o deputado que andava de autocarro e de cachimbo.

A galeria de figuras que fizeram a história da Courense é imensa e dela se desprende um halo que é o da celebração do mais íntimo de cada ofício.

O senhor Manuel é interrompido pelos telefonemas que o fazem gritar para a cozinha: “duas sopas ao meio dia para a senhora do nono andar, uns chocos e uma sopa para o sr engenheiro por cima da pastelaria.”

Pedem muitas sopas, os mais velhos. Nunca ouvi o sr. Manuel usar a palavra idoso, o senhor Manuel gosta de pessoas, não estabelece cordões sanitários do idadismo, essa doença dos cínicos, uma das doenças dos cínicos que por aí vegetam. Ninguém tem idade a mais, mesmo quando tem muita idade. Idosa é a tia deles.

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Vem isto a propósito de uma sopa de cação que comi, há dias, no Chico, em Ferreira do Alentejo. Não me lembro de ter comido uma sopa da dona Rosalina, tamanhas as doses das iguarias na Courense. Faço a anotação e o senhor Manuel puxa o fio da memória. “Durante muitos anos”, conta ele, “veio aí um cliente, daqueles de todos os dias. Chegava tarde, por volta das duas, ou ainda mais tarde, pedia um prato de carne ou de peixe e levava uma sopa para o jantar. Entretanto começou a perguntar qual era a sopa do dia seguinte. E eu respondi-lhe: a que o senhor quiser. E durante anos, a sopa de cada dia era escolhida na véspera por esse cliente que chegava, comia o seu prato de carne ou de peixe e levava uma sopa para o jantar, a sopa que escolhera na véspera”. Certo dia, o cliente despediu-se, ia passar o Natal com os filhos à Bélgica. Nunca mais voltou.

Passaram vários anos e certo dia entrou uma senhora na Courense. Queria conhecer o restaurante onde o pai escolheu, durante anos, a sopa do dia seguinte. O pai morrera nesse Natal de um ataque cardíaco. Contara-lhe a história e ela quis conhecer o restaurante onde o seu velho pai nunca foi idoso.

O senhor Manuel afasta-se para o balcão, o olhar molhado de um ontem tão presente. E eu lembro-me do poema de Ruy Belo: “Um prato de sopa / um humilde prato de sopa/ Comovo-me ao vê-lo no dia de festa/ E entro dentro da sopa/ e sou comido por mim próprio com lágrimas nos olhos”. Fico a pensar que adiante me será dada a possibilidade de pedir, de véspera, a sopa de todos os dias: sopa de cação, caldo verde com umas boas rodelas de chouriço, sopa de espinafres, creme de castanha, sopa da pedra…. Nada de Julianas, nada de canjas. Entretanto, deixai-me envelhecer devagarinho. Está muito bem assim, a ementa de todos os dias.

(SINAIS DE FERNANDO ALVES, TSF)

 

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