Fernando Correia, jornalista; comentador de rádio e televisão; articulista, foi, durante anos, a voz de um dos programas desportivos de maior sucesso, na rádio, a “Bancada Central”. O leitor, tal como eu, recordar-se-á dos seus relatos de futebol, considerados por muitos os melhores. Terá rivalizado com o saudoso Jorge Perestrelo que se celebrizou com expressões ímpares, como “Ripa na Rapaqueca”, “É disto que o meu povo gosta” e “O que é que é isso, ó meu?”…
Fernando Correia escreveu um livro – Piso 3 Quarto 313 – no qual relata, com uma simplicidade e objetividade desconcertantes, o dia-a-dia de Vera, a sua esposa, institucionalizada e transformada numa “habitante incógnita de um mundo sem memória, sem saudade e sem amor.”
A sua esposa tem Alzheimer e Fernando Correia decidiu contar a sua experiência, um contributo de quem, na primeira pessoa, narra o que sentiu quando “Esta mulher bonita, inteligente, lutadora e mãe-coragem de três filhas criadas, foi transformada em 24 dolorosas horas contadas, em mais um habitante incógnito da dimensão dos mortos-vivos, robô do mundo, incapaz de resolver o problema da doença maldita, espécime desqualificado do museu da existência humana.”
O provérbio, “As palavras são como as cerejas, vêm umas atrás das outras”, aplica-se perfeitamente aos livros de Fernando Correia. Decidi ler também o “O Homem que não tinha idade”, um romance que aborda um tema tabu na nossa sociedade: o abandono dos idosos e a institucionalização forçada.
“A escada que conduz à noite sem fim, ao eternamente só, à humilhação de saber que os filhos tinham acabado de o depositar naquele lar de idosos, considerando-o incapaz, objeto sem valor, carne engelhada e osso roído, sem mente, sem valor, sem nada.
João não prestava, diziam os filhos. Mas não, dizia ele.”
E este é o grande drama dos velhos, capazes e autênticos, que os filhos, ou alguém da família, transformam em incapazes, em coisas, em números de estatísticas, e deitam fora com a maior tranquilidade, argumentando que a vida é «assim mesmo», é a ordem natural das coisas.
No dia 15 de junho celebrou-se o Dia Internacional de Sensibilização para os Abusos e Maus tratos na Velhice. Uma data assinalada para ajudar a dar visibilidade a um problema que afeta algumas pessoas idosas, um dos grupos mais vulneráveis da sociedade. Uma realidade que não pode continuar a ser considerada um assunto de carácter privado e silenciada. Na maioria das vezes, os abusos e sofrimento infligidos são escondidos pelos membros da família e ficam confinados ao interior dos domicílios.
Efetivamente, há muitas formas de maus-tratos, desde o mau trato físico, psicológico, intromissão na intimidade, abuso financeiro, abandono, negligência, infantilização…
Quero destacar, neste texto, o mau trato que resulta na tomada de decisões em nome da pessoa -“deves fazer isto“- sem considerar a sua vontade e direito à autodeterminação.
“- És um brincalhão. Não vês como estás melhor aqui? Tens telemóvel para nos falares quando quiseres. Podemos trazer-te um computador. Há televisão na sala de estar. Oh! Pai. Por amor de Deus… Não complique o que é fácil. (…) sabia que a razão era sua e sabia mais: que a vida também era sua e que a podia viver mais e mais, até que surgisse a decisão final que não seria, obviamente, a sua, mas que corresponderia à vida de um homem sem idade! (…) um ser vivo tem direitos (…)”
Os nossos pais e avós, independentemente da sua idade, continuam a ser livres de escolher como viver a sua vida e de tomarem, livremente, as suas opções. Um bom começo poderá ser a escuta ativa, saber que projeto de vida querem para si e respeitá-lo.
Não respeitar a sua vontade, tomar decisões em seu nome, institucionalizar à força ou enganando-os é mal tratar aqueles que serão sempre os nossos pais ou avós.
“Cuidar de um pai velho vai para além da relação filial. Um ser humano ao ajudar outro ser humano vulnerável aprende a ser melhor.”
(Marie de Hennezel)
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