A pandemia trouxe à tona uma série de forças negativas que condicionam, poderosa e imperceptivelmente, a vida social: entre elas, o medo do outro, a facilidade com que se obedece individualmente ao poder do Estado, a extraordinária força colectiva do temor da morte e a amplitude das desigualdades, sobretudo nos países altamente desenvolvidos. Dentro desta última categoria, há um tipo de desigualdade de que raramente se fala: a que separa os velhos do resto da sociedade.
Constata-se imediatamente um paradoxo: se, por um lado, com a pandemia, se reuniram os idosos num “grupo de risco” que mereceu logo o privilégio de ser tratado prioritariamente, por outro lado, eles apareceram aos olhos de todos como uma massa humana de certo modo apartada da sociedade, sem voz activa – nem passiva – na vida comum, situada numa espécie de limbo da existência real. Explico-me: com a excepção de certas profissões indispensáveis à economia e à saúde, a pandemia pôs em suspenso a acção de todos os agentes sociais, adultos e jovens, trabalhadores e estudantes. Só não suspendeu a acção dos velhos, porque estes já não tinham acção de espécie alguma, nem laboral nem de cidadania, nem de reivindicação corporativa, nem em nome de um estatuto cultural ou moral. Não se confinaram os velhos porque já estavam confinados, em lares ou nos espaços públicos. Repare-se na ambiguidade do tratamento a que foram sujeitos: reconhece-lhes o valor simbólico, mas negativamente, enquanto seres passivos reduzidos a corpos vulneráveis, na antecâmara da morte.
Esta situação nada tem de novo e surpreendente. Extrema uma situação mais geral que toda a gente conhece, e que aceita com embaraço. Com efeito, os velhos são discriminados e desvalorizados pelos mais novos o que, de resto, nestes provoca uma culpabilidade miudinha e insistente. É verdade que o discurso do Estado parece reflectir esta culpabilidade envergonhada dos adultos. Reconhecendo os direitos dos idosos à reforma e outros benefícios, fecha-os na imagem de seres irremediavelmente (mesmo quando progressiva- mente) improdutivos, e atira-os para a periferia da sociedade. Discurso que supõe uma certa ideia dos velhos e da velhice que não passa de uma construção, resultado de um longo processo histórico.
Assim, hoje considera-se a velhice como uma espécie essência definidora de certos humanos. Já não é uma fase da vida – de uma vida -, mas o que define aquela pessoa, que deixa de ter passado e futuro, para ser vista unicamente através do presente provisório e efémero em que ainda subsiste: não é uma pessoa velha, é um velho ser, uma criatura que já foi uma pessoa, e de quem agora se espera, sobretudo, a morte. Como mostram, paradoxalmente, os eufemismos que tentam mascarar a velhice, denegando-a: “sénior”, “terceira idade”. Quer-se disfarçar a decadência e a morte, como sendo o que define, exclusiva e essencialmente, aquela criatura de idade vetusta. A vontade de encobrir a qualidade de “velho” testemunha o medo que a velhice acabe por absorver e apagar completamente a pessoa. Porque se julga mesmo que a velhice resume e define, afinal, o todo daquele ser humano. Vulnerável, frágil, radicalmente diminuído pelas doenças e pela idade, já tocado pela morte, eis como o olhar do adulto, moderno e dinâmico, tende a caracterizar o homem velho. Já não há, propriamente, aquele afecto social que o animava antes e de que ele tanto precisa.
Note-se que estamos nos antípodas do modo como as sociedades tradicionais encaravam os idosos, dando-lhes estatuto e funções, enquanto agentes activos da vida em comum. Entre a tradição e a modernidade, uma grande transformação se operou: inverteu-se a ordem de subordinação entre a pessoa e a velhice, fazendo depender a segunda da primeira. Esta transformação da imagem dos velhos está na raiz de muitos problemas actuais, éticos, políticos e económicos, que giram à volta da velhice e do envelhecimento. A verdade é que deixámos há muito de saber como situar os idosos no mapa das hierarquias e valores sociais. Por duas razões, essencialmente: porque esse mapa se deslocou irreversivelmente, e porque a própria noção de “velhice” sofreu e sofre constantes abalos. As duas razões estão interligadas.
O antigo estatuto de “Ancião”, nas sociedades exóticas e tradicionais, desapareceu, para não mais voltar. Estatuto que detinha um valor específico. De onde vinha ele? Da proximidade da morte e do mundo dos antepassados: os Anciãos constituíam um marco e, de certo modo, uma mediação na passagem dos vivos para a vida post mortem. Daí o seu papel como guardiões da tradição (com a sua origem mítica), dos saberes e da sabedoria, enquanto adivinhos e intérpretes da ética dos comportamentos. Uma vez ultrapassados certos patamares etários, bem definidos biológica e ritualisticamente, homens e mulheres aproximavam-se da morte, isto é, dos espíritos dos antepassados e dos deuses. E pelo seu ministério e influência, que atravessavam toda a comunidade, tornavam-se imprescindíveis ao seu bom funcionamento. Ganhavam assim o que se poderia chamar uma “mais-valia espiritual” que decorria da sua proximidade com os mortos e, claro, da importância do papel destes últimos no campo social (a rede das crenças e representações mágico-religiosas condicionava intimamente toda a organização da sociedade, da política e da justiça às práticas terapêuticas). De certo modo, pode-se dizer que, nas sociedades tradicionais, quanto mais se era avançado na idade, mais valor (“espiritual”) se adquiria. A inversão desta situação no mundo moderno vem, pois, do apagamento progressivo da presença dos mortos na vida social. Com o desaparecimento do que fundava e legitimava o seu valor, os Anciãos foram perdendo importância, desvanecendo-se. Hoje, conhecemos bem a azáfama de tantos empreendimentos que têm como objectivo disfarçar o
envelhecimento e a morte, na vida quotidiana, nos ritos funerários, negá-los mesmo através da ciência e da tecnologia. A morte é inconveniente, e os velhos e os mortos estão em vias de extinção. Não é o resultado de um novo darwinismo social, mas uma forma inédita de eugenismo capitalista.
Uma segunda razão ajuda a explicar o afastamento do Ancião da vida social: a sua existência e actividade estavam ligadas ao território, nas sociedades exóticas e tradicionais. O território, a terra onde estavam enterrados os antepassados, ocupavam um lugar privilegiado na rede de mitos e crenças mágico-religiosas. Com a imensa desterritorialização a que o capitalismo obrigou as populações dessas sociedades, os Anciãos foram-se extinguindo.
Mas um outro factor contribuiu decisivamente para a desvalorização da velhice: a transformação da natureza do trabalho. Uma longa história, escrita e reescrita por tantos historiadores, sociólogos, economistas e filósofos, mostra-nos como o trabalho actual nasceu e se formou. Lembremos, apenas, que, com o capitalismo, o valor da mercadoria deixa de depender da rede simbólico-religiosa em que estava inserido o trabalho do artesão. O trabalhador desprende-se do objecto fabricado, a sua própria força de trabalho torna-se uma mercadoria, cujo valor é fixado no mercado como puro valor de troca. Assim, o valor da força de trabalho individual depende cada vez menos dos saberes tradicionais, e cada vez mais da força material, física, mais apta a fornecê-la: o adulto, o jovem e mesmo as crianças (no século xix, sobretudo) são os elementos mais produtivos. Como o saber “de experiência feito” já conta pouco ou nada na produção da mercadoria, os idosos são progressivamente excluídos do mercado de trabalho. Nem física nem mentalmente são capazes de competir com os mais novos. Só em certos casos, como em lugares empresariais de topo ou em cargos políticos, se encontram ainda velhos.
Na fase avançada actual do capitalismo global financeiro, são sobretudo as competências imateriais, ligadas à ciência e às novas tecnologias que ganham valor. A força corporal conserva o seu prestígio, sendo ainda necessária para inúmeras tarefas do trabalho fabril, mas é sobretudo a imagem do jovem ou da jovem adulta que se impõe – não só como ideal do trabalhador a quem se pede, mais do que competências curriculares, “o entusiasmo, o desejo, o investimento mais íntimo na empresa”, mas também como emblema do consumidor financeiramente mais qualificado para satisfazer a pulsão devoradora da sociedade de consumo.
A pandemia atraiu a atenção pública para a situação dos idosos, que resulta das transformações que evocámos. Tomemos como exemplo, os lares. De uma maneira geral, a situação dos residentes dos lares reflecte o modo como os velhos são considerados e tratados pela sociedade e pelo Estado. Mesmo em casos privilegiados (como em lares de luxo), a própria noção de “residências para idosos”, separadas da vida social, mostra como a ideia de inclusão ou integração é insuficiente e deficiente. É ela que permite e acompanha as políticas, inadmissivelmente negligentes, com que se descuidou a segurança sanitária dos lares, atingidos por um número escandaloso de infecções e de mortes.
Se os velhos foram e são as vítimas preferenciais do novo coronavírus, não é só pela fragilidade e vulnerabilidade da sua condição física, mas também porque não foram suficientemente protegidos – e não o foram porque perderam o valor social que tinham como adultos, enquanto agentes económicos activos. Faltaram meios, recursos, e, sobretudo, vontade para investir em seres economicamente dispensáveis. E que, no fundo, constituem um peso para a sociedade. No discurso gerontofóbico habitual, os velhos “já não servem para nada”, “recebem mais do que dão”, constituem um “sorvedouro da Segurança social” na nossa sociedade que conta já mais idosos e reformados do que trabalhadores activos, etc. São excluídos porque, entrevados nas suas limitações e maleitas, contrariam a imagem-padrão do agente económico ideal do capitalismo actual: mulher e homem perfeitos, jovens de espírito e de corpo, empreendedores, pró-activos, “desportivos”, abertos ao futuro imprevisível e precário, detentores de uma saúde invulnerável, energeticamente intensos e positivos. Como os idosos de hoje – e os portugueses mais do que os de muitos países europeus – estão longe de se conformar a esta imagem, são relegados para espaços reservados, para “reservas” afinal, que formam comunidades fechadas, onde comunicam uns com os outros, mas já não interagem com a vida geral da sociedade. As visitas da família, as saídas em grupo, quando existem, não são socialmente “inclusivas”, mantendo apenas uma aparência de “ligação com o exterior”, e reforçando, na realidade, a fixação no território do lar. Não quero dizer com isto que a vida nos lares é uma vida de ghetto, não desvalorizo os benefícios e os prazeres que se disponibilizam aos residentes. Quero apenas salientar o paradoxo, em forma de duplo-impasse, com que os idosos estão confrontados nas nossas sociedades ocidentais, e de que os lares são resultados emblemáticos.
O duplo-impasse formula-se assim: ou aceitas as nossas regras e te tornas um velho obediente e passivo, sem espaço nem tempo só teus, sem individualidade própria; ou não aceitas as nossas regras, e desejas simultaneamente uma autonomia e uma inserção singular na vida social, ficando condenado a soçobrar física e mentalmente, na condição de velho diminuído e doente que é a tua. É evidente que o proponente (o sujeito do discurso do poder social) procura incentivar o idoso a seguir a primeira via, que ele apresenta com as melhores vantagens: se aceitas a primeira opção, obterás uma série de compensações e prazeres compatíveis com o estado de obediência. E como esta solução parece ser a menos má, assegurando ao menos a sobrevivência biológica e um certo conforto material, o idoso escolhe-a sem grandes resistências. É, em geral, o que acontece com o idoso que entra para um lar. Repare-se que o duplo-impasse da velhice não é senão o prolongamento de outros duplos-impasses semelhantes com que o adulto que se confrontava já. De tal modo que se torna mais fácil, mais natural, escolher a via da obediência passiva.
O duplo-impasse corresponde à forma ambígua como a sociedade encara os velhos e a velhice. Os velhos são considerados seres inactivos, passivos, doentes, não de doenças médicas, mas, fundamentalmente, de velhice. A velhice tornou-se a doença de que padecem os velhos, actualmente. Como tal, deve ser tratada respeitando o doente, mas, como se trata de uma doença incurável e terminal, o tratamento consistirá em proporcionar-lhes a “melhor qualidade de vida”, enquanto durarem. Encaram-se os velhos como doentes um pouco especiais que merecem mais respeito, cuidados e carinho do que os outros – na condição de se deixarem tratar como doentes reduzidos a corpos mais ou menos inertes, obedecendo sempre aos médicos e encarregados de saúde. Não se lhes confere autonomia nem poder de decisão. É significativo que, durante a pandemia, não se tenha ouvido a voz dos idosos, para saber do seu estado de espírito e da sua opinião quanto às medidas de que foram objecto.
A ambiguidade de tratamento existia antes da pandemia. Esta não fez mais do que a ampliar e lhe dar visibilidade, acentuando a boa vontade e o sentido moral da opinião e das autoridades. Que sociedade seria a nossa se não déssemos a prioridade dos cuidados sanitários aos idosos, se os deixássemos viver sem cuidar deles? Foi o que fizemos, logo no início da pandemia. Mas já não foi o que fizeram certos médicos italianos e espanhóis quando, no pico da primeira vaga, com os cuidados intensivos a transbordar, tiveram de preferir ventilar certos doentes, deixando outros com mais probabilidades de morrer: escolheram-se os mais novos, em detrimento dos idosos. Esta oscilação da opinião mostra que a súbita compaixão de todos pelos velho também serviu para insuflar boa consciência a uma sociedade que, em condições normais, os desvaloriza.
Tudo isto não me faz esquecer as tentativas e os esforços para atribuir ao idoso um estatuto social digno que se reflicta em medidas concretas e exequíveis. A sociedade civil tem multiplicado as iniciativas, e o Estado vai ajudando “no que pode”. No plano teórico, publicaram-se imensos estudos sobre os idosos e sobre o envelhecimento – e, também, sobre o que poderíamos chamar a “ética da velhice”, procurando sempre definir os melhores requisitos para que se possa criar uma verdadeira sociedade de inclusão. No que vamos agora desenvolver, chamamos a atenção para um aspecto da vida dos velhos que tem sido pouco. Não ignoramos a terrível tragédia que pode ser a velhice, com a diminuição drástica das capacidades motoras e cognitivas, com a vulnerabilidade “injusta” a que está sujeita, com as doenças e males de toda a espécie que desabam sobre os velhos. Com o envelhecimento vem o cansaço, o esforço doloroso, a lentidão, as longas esperas vazias das horas que passam, a solidão. Mas acreditamos, também, que muita dessa tragédia inominável poderia ser evitada, se conseguíssemos mudar a vida – dos adultos e dos jovens primeiro, dos idosos que eles serão, depois. Acreditamos que muito do sofrimento a que os homens e as mulheres (velhos e não velhos) parecem estar condenados por uma fatalidade natural é um mal inútil, aberrante, sem funções, susceptível de ser erradicado como um vírus maléfico.
Max Scheler escreveu vários ensaios sobre a fenomenologia do tempo e da velhice. Para ele, o sentimento da velhice nasce com o encolhimento progressivo do futuro que o envelhecimento traz, na unidade e totalidade da vida de cada um. Supõe, por isso, a consciência da morte. Partindo deste facto, – e mantendo-nos no plano fenomenológico -, podemos caracterizar certos tipos de envelhecimento, considerando apenas as variações da atitude do idoso perante a morte. A vantagem desta categorização, está em integrar a consciência da morte, tornando-a um factor decisivo no processo de envelhecimento.
Tentemos então esboçar uma pequena classificação, reunindo as inúmeras versões concretas e diferentes de envelhecer, em quatro grandes tipos: no primeiro, entram as pessoas que, com medo da morte, se fecham sobre si, interessando-se cada vez menos pelo mundo e pelos outros. Desenvolvem assim um egoísmo particular (o “egoísmo dos velhos”), além de ressentimento contra todos e um pessimismo generalizado relativo à vida. Preservam-se, protegendo-se obsessivamente da morte, numa reacção muitas vezes paranóica que as ajuda a sobreviver. Cultivam manias, impõem-nas aos que as rodeiam, sentem-se com direitos absolutos sobre os outros. Reduzem ao mínimo as actividades corporais e mentais, numa espécie de economia de vida que, julgam eles, os ajudará a sobreviver. São activos, mas avaros da vida, voltados para dentro.
No segundo tipo, a regra é a resignação e a passividade. “Vai-se vivendo”, enquanto a morte não vem. Vai-se vivendo segundo as rotinas conhecidas, com a ajuda dos remédios e dos cuidados dispensados pela família e pelas instituições. Aproveitam-se os prazeres do momento, vive-se um dia de cada vez, sem olhar para o futuro. Na verdade, a morte paira sempre por cima das suas cabeças, mas fazem o possível por não darem por isso. É uma vida cada vez mais empobrecida, à medida que diminuem as capacidades físicas e intelectuais. Aceitam o que vem, sem expectativas. “Paciência”, parece ser o lema destes idosos resignados, sem esperança nem desesperança.
Um terceiro tipo nega o envelhecimento. São os velhos que querem ser e parecer eternamente jovens, recusando, no fim de contas, a realidade da sua morte. Apoiando-se naquele desejo de “eterna juventude” que parece ser um fantasma universal – que surge na literatura em personagens como Falstaff ou Fausto -, querem a apagar os sintomas que, no seu corpo, marcam indelevelmente a irreversibilidade do tempo. Encenam então toda uma expressividade “jovem”, exagerando gestos, risos, danças, movimentos e contextos artificiais. É claro que quanto mais denegam a velhice, mais ela, cedo ou tarde, se faz dolorosamente sentir. Alimentando e explorando esta atitude, criaram-se indústrias de turismo e lazer para estes jovens velhos irredutíveis. Recusam a morte, o envelhecimento, a velhice, e não vivem sequer o presente do seu corpo. São falsos activos, falsos dinâmicos, porque a sua alegria de viver traduz mais desespero do que genuíno prazer.
Estes três tipos não esgotam, evidentemente, os casos concretos de envelhecimento segundo a atitude perante a morte. Muitos outros existem, que englobam, por exemplo, os que se cansam de viver e se suicidam ou os que persistem, por uma questão de dignidade pessoal e vontade de não se tornar um fardo para os outros, em se manter independentes, desafiando a morte. Por outro lado, os tipos delineados são apenas ideais, os casos reais vão buscar às diferentes categorias os seus múltiplos traços.
Mas há um quarto tipo de envelhecimento que convém referir. Mais raro do que os outros, mas não menos importante, servir-nos-á para formar a ideia de uma outra velhice possível. Nele encontram-se as pessoas que têm uma velhice saudável, não só fisicamente, mas sobretudo, espiritualmente. Para elas o envelhecimento não quebrou o curso da vida adulta, prolongou-o e transformou-o. São velhos activos, interessados e, tanto quanto possível, participantes na vida social. Enquanto nas três primeiras categorias os idosos abdicaram mais ou menos da vida, afastando-se ou isolando-se, os da quarta categoria interagem com todos no tempo vivo da comunidade. Vivem a contemporaneidade, quando os outros velhos estão já numa temporalidade suspensa, fora do curso real do tempo.
Em geral, considera-se que as pessoas que envelhecem assim constituem excepções. Podem ou não atingir idades muito avançadas. Quando ela existe, a sua longevidade é atribuída a factores hoje bem estudados, como a alimentação, o exercício físico ou a existência de uma rede social em que se inserem, admitindo, com tudo isto, um factor genético. São pessoas que aos 70, aos 80 e mesmo 90 anos, têm uma vida “invejável”, criativa e cheia de acontecimentos.
Na verdade, não se sabe realmente o que causa uma longevidade tão saudável. Associamo-la, em geral, ao amor e investimento no movimento da vida, mas estes conceitos são também indefiníveis. Mas sabemos que as limitações corporais levam o velho a voltar-se para dentro, cultivando o ego e a saúde física, o que lhe permite, por vezes, sobreviver por muitos anos. É, de resto, o que fazem os idosos da primeira categoria com o seu ego de sobrevivência protegido contra a morte
Na quarta categoria, a intensa vontade de vida que atravessa todos os outros factores é, antes de mais, vontade de expandir-se, transformar-se e criar. Não se enquistam à volta do ego, esquecem-no, o interesse pela vida sobrepõe-se, varre a solidão e apaga o medo da morte. Não se dá habitualmente atenção à maneira como os idosos podem criar, mesmo nas suas actividades quotidianas. Eles sabem de facto criar, obedecendo a uma irreprimível e natural maneira de agir e falar que transforma, renova e inventa a maneira de estar com os outros, e que se pode traduzir na construção de uma narrativa, de um jogo novo, de um objecto ou de uma ideia. É o que sabem fazer os Avós, em brincadeiras com os netos. É o que permite a tantos artistas, escritores e pensadores, criarem obras originais notáveis, em fim de vida. Não são excepções, são casos de velhice que, graças à conjunção de certos factores individuais e sociais, sobressaíram da média anónima em que a cultura da morte numa existência passiva levou a melhor. Há uma velhice inventiva que existe virtualmente e procura exprimir-se em qualquer vida, numa mulher do povo como num artista visual.
De onde vem esse poder virtual de criar, próprio dos velhos? É verdade que, na maior parte dos casos, já se tinha manifestado durante a juventude e a idade adulta. Mas pode também desabrochar só na velhice, porque esta favorece a capacidade de criação. Com ela vem um desprendimento das coisas que proporciona uma liberdade inédita e uma tendência para a actividade lúdica. Ao mesmo tempo, ocorrem aqueles fenómenos, tradicionalmente perspectivados sob o ângulo da degenerescência e da demência: perda de memória, fragmentação do pensamento, dispersão das imagens, confusão de ideias e de emoções. A carga negativa que o discurso da saúde mental e da opinião atribuiu a estes fenómenos foi tal, que os idosos passaram a ter vergonha, como se fossem eles os culpados de ser assim, quer dizer, de ser velhos.
Mas a fragmentação da vida psíquica da velhice pode transformar-se em potencialidade de criação. Lembremo-nos que ela acompanha o processo criativo artístico e de pensamento, que produz deliberadamente o caos para melhor poder associar ideias consideradas incompatíveis, ligar imagens heterogéneas e criar visões totalmente novas. Em geral os velhos vêm surgir o caos psíquico com terror: não sabem aproveitá-lo, como o artista, ou exprimi-lo simplesmente, como as crianças. No entanto, é-lhes possível não o desperdiçar. Para começar, a dispersão e falta de memória tem o seu lado positivo: limpa a mente, torna-a, de certo modo, virgem e livre. Tem-se um acesso desimpedido às coisas, vê-se e sente-se a natureza melhor, os animais, os sons e as cores, um gesto, os afectos, cada coisa por si própria e como pela primeira vez – como as crianças. Daqui a extraordinária afinidade entre elas e os velhos: falam os dois uma linguagem não-verbal, intuitiva, e comunicam imediatamente. Vem daí, também, a possibilidade de associar os fragmentos de outro modo, inovando e inventando. E esta capacidade de criação alimenta e ajuda a manter nos velhos uma certa margem de autotransformação, que parece perdida, quando a velhice se instala. A tendência natural para a rigidez, para o enquistamento e a petrificação pode ser contrariada e compensada pela cultura da plasticidade do espírito e da abertura à transformação. Será uma forma actual de produzir aquela “mais-valia espiritual” de que gozavam os Anciãos.
Sejamos claros: não se trata apenas de compreender que os velhos são criativos, contrariamente à crença tradicional que os julga incapazes de aprender e inovar. Há muito que as neurociências e a psicologia cognitiva nos mostraram que não é assim. Por outro lado, o trabalho científico, actual e futuro, que visa retardar o envelhecimento através da regeneração celular, transformará certamente a criatividade da velhice. Sendo um bem extraordinário, não abolirá, no entanto, a própria velhice. Assim, amanhã como hoje, ter-se-á de dar um outro alcance a essa criatividade: ela não vem só da plasticidade neuronal, mas da sua condição existencial, assente em toda uma experiência de vida. Os velhos são criativos porque são velhos, não apenas porque o seu cérebro o permite. E este poder de criar que possuem, torna-os não só criativos, mas criadores. Assim, defender a sua criatividade não significa reconhecer-lhes certas competências técnicas, cognitivas e imaginativas, mas afirmar o valor ético e existencial da velhice: ser criador é possuir o valor específico e a dignidade de cada ser humano. Por isso é tão importante afirmá-lo dos velhos.
Toda a questão está em aproveitar institucionalmente este poder virtual da velhice. Como fazer dele uma prática colectiva que ajude os velhos a integrar-se na vida da comunidade? Para acabar com a discriminação, é preciso que a velhice seja revalorizada e reconhecida como um bem necessário à sociedade. Para tanto, é preciso que seja evidente o valor do trabalho social dos velhos. Que “trabalho social”? Será que a própria noção de “trabalho”, na acepção corrente da economia política, se aplica ainda quando se fala da velhice?
Sabemos bem como certas doutrinas procuram contrariar o preconceito discriminatório do “velho inútil e improdutivo”, inapto ao trabalho: promove-se a ideia do “envelhecimento activo”, adoptam-se medidas como o aumento da idade da reforma, etc. Estas doutrinas assentam na ideia de que os idosos devem ser tratados como trabalhadores válidos possuindo uma força de trabalho socialmente útil. Querem equipará-los ao modelo vigente do mercado de trabalho, o adulto e o jovem saudável e rentável. Isto é, ao mesmo tempo que se deseja eliminar a exclusão de que são vítimas, nega-se-lhes a sua condição própria de velhos. Tomam-nos por aquilo que já não são. Esta perspectiva é hoje geral, quando se concebem as melhores políticas para a 3ª idade.
Ora, considerar o valor social do poder criador dos idosos é ir buscar ao fundo negativo do que os torna específicos – e que pode ser a razão da discriminação de que são objecto -, os elementos que lhes dêem novamente valor e integração. A dificuldade está, como dissemos, em transformar essas capacidades individuais em práticas colectivas, socialmente úteis e pertinentes. Para o conseguir, teremos, certamente, de lutar em duas frentes, pelo menos: elaborar uma pedagogia da velhice que ensine os velhos a aceitar-se como tais, enquanto diminuídos e ricos de potencialidades, enquanto injustamente discriminados e detentores de direitos positivos. Sobretudo, com o direito a participar na vida social, enquanto seres activos e afectivos, com os seus problemas próprios, como em qualquer fase da vida, mas seres que têm um presente vivo. Tudo isto poderá fazer parte do programa das universidades seniores, como já por vezes é o caso, ou de outras instituições. Mas deve-se também incitar os idosos a exprimir-se e a reconhecer-se no que podem construir com as suas próprias ideias, fragmentos, devaneios, falhas, imagens. Terão de fazer a aprendizagem do seu próprio caos, para o domar e dele extrair a energia da criação. Há aqui todo um campo novo a explorar, de que nem suspeitamos as possibilidades. Esta pedagogia da velhice que, em parte, ensina os velhos a serem velhos, deve ser complementada por uma pedagogia da adolescência e da juventude, que os faça aprender a conhecer a velhice e a valorizá-la. Resta o problema da pertinência do que chamámos o “trabalho social dos velhos”. É difícil postular que o resultado do fazer criativos dos idosos será rentável e facilmente inserível na rede produtiva de cada país. Podemos imaginar muita coisa, até que as histórias inventadas e contadas, ou os objectos construídos, poderão suscitar novas start-ups. Mas não será certamente nessa perspectiva – de um mercado regido por uma competitividade cada vez mais feroz – que veremos florescer a actividade lúdico-criativa dos velhos. Esta última não será reconhecida com os valores do mercado. Serão necessários outros valores, – como os que alimentam a actividade artística ou a solidariedade social ou outras, mais subtis, ligadas ao valor da vida – cada vez menos relevantes no sistema económico vigente, mas também, cada vez mais exigidos pelas novas gerações que querem outras práticas sociais e outros modos de vida.
Na verdade, a valoração dos velhos passa por uma alteração profunda da sociedade. Trata-se não de dar um valor (artístico, económico ou social) ao produto da sua actividade, mas de fazer com que a sua existência tenha o mesmo valor ontológico e social dos membros das outras classes etárias. Tanto mais que o problema da passividade e do pouco valor que os idosos a si mesmo se atribuem vem já de longe, prolongando e reforçando apenas o problema que atinge a maioria dos adultos que, em geral, são educados na obediência e aceitação do estado de “servidão voluntária” que lhes é proposto. No fim de contas, a discriminação injusta da velhice levanta as mesmas questões existenciais que o racismo, o poder do homem sobre a mulher, a xenofobia ou a homofobia: sendo englobante e transversal à sociedade, a sua resolução deverá subverter todo o modo de vida a que estamos acostumados. Uma coisa é certa: os velhos vivem abaixo das suas possibilidades. Trazem com eles uma sobrecarga de apatia e resignação que os esmaga e entorpece. Para que possam viver livremente e com o pleno direito de existir, teremos de transformar profundamente as mentalidades e os poderes estabelecidos. Cada passo dado nesse sentido será, sem dúvida, um contributo real para que os idosos conquistem a sua velhice perdida.
JOSÉ GIL
Texto enviado à Conferência Nacional da APRe! 2020.
FONTE: APRE!
FOTO DE CAPA: VISÃO
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