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Ainda o Estatuto da Pessoa Idosa: A cidadania na linha do tempo

O tema do Estatuto da Pessoa Idosa tem-nos suscitado aturada reflexão, pela sua importância e complexidade. Em 2025, volta a discutir-se uma proposta de lei que pretende instituí-lo, apresentada como resposta ao envelhecimento da sociedade portuguesa e como concretização do artigo 72.º da Constituição.

O diploma encontra-se atualmente em consulta pública no portal do Parlamento, acessível aqui, aberta até votação na especialidade. É, por isso, o momento certo para uma leitura atenta e uma intervenção cívica esclarecida.

O propósito é nobre, mas o resultado permanece aquém. O diploma agora apresentado, após um primeiro ensaio na anterior legislatura, não cumpre ainda o desígnio constitucional que o inspira, porquanto não garante a igualdade ao longo da vida nem traduz uma visão do envelhecimento como um processo natural e estruturante na construção da identidade individual.

O artigo 3.º, que enuncia os princípios gerais, recorre a uma linguagem de consenso (dignidade, independência, participação), mas não cria vinculação. O Estado “promove”, “apoia”, “incentiva”, mas não garante, não assegura, não obriga. Falta-lhe densidade normativa e força executiva.

O artigo 4.º, dedicado aos direitos da pessoa idosa, limita-se a repetir direitos já consagrados na Constituição e em instrumentos internacionais. Omite, no entanto, o essencial: a consagração expressa, axial, da proibição de discriminação em razão da idade, núcleo do princípio da igualdade material. Sem essa consagração, a proposta de lei não se distingue das intenções políticas que o antecederam.

A criação do Conselho Nacional para o Envelhecimento Ativo e Saudável (artigo 11.º) é outro sinal de timidez legislativa. O órgão nasce sem autonomia, sem competência de monitorização, sem poder de recomendação vinculativo. É um órgão para ouvir, não para agir, uma instância consultiva num domínio que exige instrumentos de fiscalização e avaliação permanentes.

Mais grave, porém, é a ausência de transversalidade e de um fio condutor, numa proposta de Lei que assumidamente não assentou em qualquer audição, estudos ou pareceres prévios (que os há), regressando a uma lógica segmentada e avulsa, focada em domínios temáticos.

O envelhecimento é, mais uma vez, tratado como uma categoria social autónoma – “as pessoas idosas” – e não como uma dimensão contínua e como uma etapa relevante da vida.

Nenhuma disposição impõe que os diplomas que concretizem as políticas de saúde, habitação, trabalho, mobilidade ou cultura integrem a perspetiva do aumento da longevidade no seu desenho e na sua execução.

Os Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas (adotados em 1991) – independência, participação, assistência, realização pessoal e dignidade – há muito revelaram que importa, em primeira linha, desconstruir mitos e crenças acerca da supostamente inquebrável relação entre a velhice e o declínio. Há mais de trinta anos, aí se escreveu que se reconhecia a enorme diversidade na situação das pessoas idosas, não apenas entre os vários países, mas também dentro do mesmo país e entre indivíduos, a qual exigia uma série de diferentes respostas políticas. Aí se afirmou, também, a existência de estudos científicos que contrariavam muitos estereótipos sobre declínios inevitáveis e irreversíveis com a idade.

O diploma ora em consulta pública persiste em ignorar essa matriz.

Um texto com esta configuração corre o risco de produzir o efeito inverso ao que proclama. Ao pretender proteger, pode acabar por isolar, e ao nomear para incluir, pode cristalizar a diferença. A segmentação jurídica da idade, quando não ancorada no princípio da não discriminação efetiva e quando não explicitadas as razões da autonomização, tem o risco de potenciar o mesmo Idadismo que visa combater.
Mas um Estatuto da Pessoa Idosa pode – e, na nossa opinião, deve – ter outra natureza. Uma lei assente na capacitação e na preparação do envelhecimento, enquanto indivíduos e enquanto sociedade, não pode ser uma mera cartilha compiladora de direitos dispersos por vários diplomas.

Deveria, antes, assumir-se como uma verdadeira Lei de Bases do Envelhecimento e da Longevidade, capaz de estruturar e de servir de motriz para políticas públicas coerentes, participadas e avaliáveis.

Se o Estatuto da Pessoa Idosa vier a ser aprovado com a arquitetura legislativa que defendemos, Portugal não será o primeiro país europeu a legislar sobre envelhecimento (França, Finlândia, Roménia ou Eslovénia já dispõem de diplomas relevantes), mas assumirá, sem dúvida alguma, uma posição pioneira na Europa.

Ao consagrar um estatuto de cidadania ao longo da vida, que integre a não discriminação por idade, medidas de ação positiva onde a desigualdade de facto persista e o direito a cuidar e a ser cuidado como verdadeiros direitos humanos e pilares de políticas públicas, Portugal assume que o seu pioneirismo envolve a responsabilidade acrescida correspondente ao lugar que o nosso país ocupa no mapa demográfico mundial.

Legislar sobre o envelhecimento, neste contexto, é legislar sobre o próprio tempo e sobre o modo como queremos habitá-lo.

Um Estatuto concebido nestes termos deixará de ser paternalista, para se tornar relacional. Não disporá sobre as pessoas idosas, mas sobre como envelhecer em cidadania plena.

E reconhecerá que cada um deve poder envelhecer como sempre viveu ou devia ter podido viver: à sua maneira.

Advogada / Coordenadora da Desk Longevidade +
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