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ENFRENTAR A ESCRAVIDÃO MODERNA QUE ATINGE PESSOAS IDOSAS É DESAFIO EM TERCEIRO GOVERNO LULA

Gerou muita e justificada indignação a notícia de que, em julho de 2022, uma mulher de 63 anos foi resgatada depois de 32 anos de trabalho análogo à escravidão no município de Nova Era, na região central de Minas Gerais. O resgate foi feito por uma força-tarefa da Auditoria Fiscal do Trabalho em Minas Gerais, Ministério Público do Trabalho e Polícia Militar. A idosa trabalhava em dois locais para uma família sem salário, décimo terceiro ou qualquer outro benefício.

O resgate de pessoas idosas em regime de escravidão moderna, entretanto, não é nada raro no Brasil do século 21. Pelo contrário, essa modalidade de crime que atesta grave retrocesso civilizatório no país, onde a escravidão foi oficialmente abolida em 1888, atinge um número crescente de idosos. Recuperar o vigor do combate ao trabalho em condições análogas à escravidão é um dos desafios éticos para o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, eleito presidente da República a 30 de outubro de 2022.

De acordo com o Observatório Digital de Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, entre 1995 e 2021 foram resgatados 55.303 trabalhadores em condições análogas à escravidão no Brasil. Destes, somente entre 2003 (ano do Primeiro Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo) e 2021, foram resgatadas 631 pessoas idosas de 60 anos ou mais. No mundo são 50 milhões de pessoas em situação de escravidão moderna, nas estimativas da Organização Internacional do Trabalho, Walk Free e Organização Internacional para as Migrações. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) lidera os esforços mundiais contra a escravidão moderna e trabalho forçado em geral.

Ações contra a escravidão moderna no Brasil

Observatório Digital é fruto da parceria entre Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho (OIT), Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia. O Observatório é uma das iniciativas associadas ao enfrentamento da escravidão moderna no Brasil, reunindo diversas instâncias.

Ações efetivas começaram a partir de discussões organizadas na Procuradoria Geral da República em 1992, levando à criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do antigo Ministério do Trabalho e Emprego. Foi igualmente criado o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), substituído em 2003 pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e, depois, Coordenação Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete). Em 2003, primeiro ano do primeiro mandato de Lula na Presidência da República, foi elaborado o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que contribuiu para intensificar as ações de enfrentamento da escravidão moderna.

Banner eletrônico de campanha do Ministério Público Federal contra o trabalho escravo

O esforço permaneceu até o governo de Dilma Rousseff, que deixou o cargo em função do impeachment aprovado pela Câmara dos Deputados em 31 de agosto de 2016. “A partir de Michel Temer e agravado no governo de Jair Bolsonaro, o combate se tornou mais complexo, depende da disposição individual de auditores fiscais, procuradores, agentes policiais federais. Deixou de ser uma política de Estado”, lamenta Ricardo Rezende, uma das principais referências da luta contra a escravidão no Brasil.

Religioso católico, ele atuou durante muitos anos na região de Rio Maria e Conceição do Araguaia, no Sudeste do Pará, um dos principais focos de conflito pela terra no Brasil. O Pará é o estado onde ocorreu o maior número de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão desde a década de 1990.

Rezende descobriu que o trabalho escravo continua sendo praticado no Brasil quando chegou àquela área da Amazônia em 1977. Ele estava na escadaria de uma Igreja quando viu um trabalhador saindo correndo de um automóvel, logo sendo seguido por duas pessoas, que o acabaram capturando.

 

Ricardo Rezende: busca pelo lucro está na base do trabalho escravo (Foto José Pedro Soares Martins)

A princípio, pensou que era algum tipo de brincadeira. Em pouco tempo percebeu que era muito sério: quem foge de situações análogas à escravidão, sobretudo no paraíso tropical da Amazônia, entra rápido para o inferno das ameaças de morte, muitas delas cumpridas.

O religioso recebeu muitas ameaças de morte, mas continuou a militância, agora como professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atuando no Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos. Há muitos anos acompanha, portanto, a evolução do enfrentamento das condições de trabalho típicas de escravidão, em particular na Amazônia.

Trabalho doméstico favorece escravidão do idoso

Sobre a escravidão da pessoa idosa, Ricardo Rezende assinala que ela acontece geralmente em áreas em que exige menor esforço físico do que, por exemplo, o trabalho no corte da cana-de-açúcar ou derrubada de matas. Então o trabalho doméstico, como ocorreu com a idosa resgatada em Minas Gerais, é uma área em que condições análogas à escravidão podem ocorrer.

Ele também cita o caso de confecções que usam trabalho análogo à escravidão, sobretudo de migrantes latino-americanos. “De qualquer modo são situações degradantes, exaustivas, que no fundo mostram a ganância pelo lucro, principal motivação do trabalho análogo à escravidão”, resume o professor da UFRJ.

Outra referência na luta pelos direitos humanos no Brasil, o sociólogo Paulo Sergio Pinheiro nota que existe uma questão estrutural evidente relacionada à permanência, em pleno século 21, do trabalho análogo à escravidão no país, incluindo o de pessoas idosas. “O Brasil ainda tem situações de escravidão de trabalhadores no campo, doméstico e em manufaturas clandestinas porque continua sendo um país racista. Não se trata de um legado da escravidão, mas de um racismo que é reproduzido na sociedade e no Estado através de toda a história da República”, afirma Pinheiro, que é membro da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos e autor dos Princípios de restituição de moradia e propriedade para refugiados e deslocados internamente da ONU [Pinheiro Principles] e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Paulo Sergio Pinheiro pede ratificação pelo Brasil do Protocolo contra o Trabalho Forçado (Foto UN independent international commission of inquiry on the Syrian Arab Republic, Geneva)

Pinheiro completa: “O racismo de certa forma normaliza as situações de escravidão. Apesar da evolução da democracia, que conseguiu ser retomada apesar de duas ditaduras, a de 1937 a 1945 e a de 1964 a 1984, com ascensão de um governo de extrema direita o país passou a fazer parte do elenco de democracias autoritárias no mundo, enfraquecendo o combate contra o racismo. No Brasil, mais do que nunca como agora, prevalece uma etnocracia na qual todas as instituições do Estado funcionam em proveito dos brancos __ onde quer que se examine, no judiciário, no funcionamento dos aparelhos repressivos, nos legislativos, tendo como pano de fundo a discriminação racista nas interações no interior da sociedade”.

A percepção de Pinheiro é confirmada pelos números do Observatório Digital de Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas. Os dados mostram que, entre 2003 e 2021, 60% das pessoas resgatadas de condições análogas à escravidão eram pretas (13%) ou mestiças (47%), enquanto 22% eram brancas e 14%, asiáticas. No mesmo período, 29% dos resgatados eram analfabetos e 40% tinham até o 5º ano do ensino fundamental.

Situações de vulnerabilidade de idosos

Paulo Sergio Pinheiro entende que muitos idosos atingidos pela escravidão moderna são especialmente vulneráveis justamente porque são negros e não foram beneficiados pelas políticas públicas muito recentes de inclusão através das ações afirmativas, como a Lei de Quotas. Ele também entende que o maior número de trabalhadores submetidos à escravidão está de modo geral no meio rural, entre outros fatores “pela insuficiente e tardia aplicação da repressão do Estado ao trabalho forçado”.

Pinheiro nota que o Brasil, apesar de ser signatário, ainda não ratificou o Protocolo de 2014 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) à Convenção sobre Trabalho Forçado, de 1930. Na época de sua aprovação, na Conferência Internacional do Trabalho em 2014, o Protocolo foi saudado como um importante instrumento para o combate às condições de trabalho análogas à escravidão.

O Protocolo entrou em vigor em 9 de novembro de 2016 e a partir de então os países que o ratificaram passaram a ter que cumprir as obrigações nele contempladas. Os países que ratificam o Protocolo devem adotar medidas adicionais às eventualmente existentes para a prevenção, proteção e assistência às vítimas do trabalho forçado, além de permitir que elas tenham acesso à justiça e à compensação.

Para garantir o cumprimento do Protocolo, a OIT possui um sistema de supervisão sofisticado que verifica se os governos efetivamente adotaram as medidas necessárias. O sistema está fundamentado na análise periódica dos relatórios fornecidos pelos países, avaliando as ações e apontando questões, quando necessário. Os resultados dessa supervisão são públicos, o que significa que qualquer pessoa, seja jornalista, ONG ou cidadão, pode acompanhar como um país está cumprindo suas obrigações.

De acordo com o Sistema de Informação sobre Normas Internacionais do Trabalho da OIT, até o momento 59 países já ratificaram o Protocolo, incluindo aqueles democráticos, como Alemanha, Dinamarca, Reino Unido  e Bélgica, e outros historicamente de governos autoritários, como a Arábia Saudita, que já ratificou e onde o instrumento entrará em vigor em 26 de maio de 2022. Nas Américas, já ratificaram o Protocolo o Canadá, Argentina, Chile, Costa Rica, Jamaica, Panamá, Peru e Suriname.

“É uma vergonha o Brasil ainda não ter ratificado”, comenta Paulo Sergio Pinheiro. “O Brasil perde, os trabalhadores perdem”, completa Pinheiro, que atribui a não-ratificação, entre outros fatores, à força política dos “proprietários escravocratas, que persistem no Brasil do século 21″.

Paulo Sergio Pinheiro e Ricardo Rezende esperam que o panorama mude radicalmente com a eleição de um governo democrático para suceder ao atual, de Jair Bolsonaro. Rezende lembra que durante a campanha para o primeiro turno das eleições presidenciais foi divulgado entre os candidatos um documento pedindo o seu compromisso com a luta pela erradicação da escravidão moderna no Brasil. Apenas o candidato Bolsonaro não assinou o documento. “Lula sempre foi solidário com a luta contra a escravidão moderna e à luta em defesa dos trabalhadores em geral”, sintetiza Ricardo Rezende. Ele recorda a presença de Lula em vários momentos no Sul do Pará, quando os trabalhadores rurais, a Igreja e suas comunidades foram fortemente perseguidas.

 

Por José Pedro Soares Martins

Longevinews

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