Artigo

Alzheimer não é o fim

Cuidar de alguém diagnosticado é um processo contínuo de aprendizado e afeto

Fernando Aguzzoli

Jornalista, autor do livro “Alzheimer Não É o Fim” e membro do conselho do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR)

“Muito provavelmente dona Nilva está manifestando a doença de Alzheimer” foi o que nos disse o médico em uma consulta de 15 minutos. Não creio que ele mensurava o impacto da frase em nossas vidas –eu certamente não fazia ideia. Mais parecia um recorte de sua rotina.

Já em casa pedi socorro ao Google e fui massacrado com termos técnicos, matérias pessimistas e a aparentemente inevitável realidade: nada a ser feito. Ainda não há cura para a doença, que acabará por interferir em nossa independência e autonomia, afetando todas as nossas relações –até com nós mesmos.

Os desafios de um diagnóstico de Alzheimer não se restringem à pessoa, afetando também familiares que cuidam e vivenciam o impacto em sua saúde física, emocional, social, financeira e psicológica. Os obstáculos são incontáveis e começam pelo mais sofrível: aceitar não poder curar ou reverter os danos a alguém que tanto se ama.

Os textos que li, quinze anos atrás, me transformavam em mero coadjuvante já que não havia dinheiro ou esforço possível capaz de curar vovó Nilva. O Alzheimer nos acompanharia até o último dia de sua vida. Depois de muito ler sobre reserva cognitiva e sua relação com a doença, comecei a perceber outra relação ainda mais importante, uma que explicava a razão de eu estar ali apesar das interrogações, da raiva e do medo.

Vovó Nilva fora uma grande amiga durante toda a nossa vida juntos, e ao longo do caminho acabamos por construir uma bem recheada reserva de afeto. No entanto, demorou um tempo até que eu entendesse que meu papel ali não era o de observar seu declínio, mas de continuar a ser seu melhor amigo, neto, e, às vezes, um pouco pai também. Tínhamos ambos protagonismo!

Ao longo do processo de aceitar a doença, acabei vivendo 50 tons de frustração. É difícil entender e se adaptar ao abstrato quando esse está em constante mudança. A doença de Alzheimer se caracteriza por ser degenerativa e progressiva, implicando em novos desafios e aprendizados a cada instante.

Logo me dei conta que precisava entender e aceitar muito além de um diagnóstico. Era preciso aceitar minhas emoções, inclusive a raiva e a frustração, e entender que tudo isso era consequência do amor imensurável que tínhamos um pelo outro. Vi, como já pensava, que não seria fácil viver o Alzheimer, mas que o amor me levaria a cometer erros benevolentes…

Quantas vezes a fiz reviver a morte dos pais com a mesma intensidade da primeira. Afinal tinha como regra inviolável a verdade como protetora da dignidade do outro.

Entendi, por fim, que a reserva afetiva era o que me mantinha ali. Não precisava ser o cuidador perfeito, pressionar-me a ter todas as respostas ou agir com a emoção esperada por outros. Pelo contrário, passei até mesmo a admirar meus erros, vendo neles parte do que nutrimos ao longo de 20 anos. Ah, e o Alzheimer te permite errar, pois em 10 minutos você vai ter outra chance. Aí é preciso lembrar do próprio erro e ressignificar a experiência, pois eles esquecerão, mas você não tem desculpa.

Quem cuida está em um constante processo de aprendizado até o último suspiro em vida –quando por sinal aprenderemos lições impensáveis sobre a vida e a morte. Mas o mais importante a dizer aqui é: o Alzheimer não é o fim, a morte não é uma derrota e você será capaz de viver tudo isso.

SEÇÃO DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE

A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado neste ano de 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).

https://www.folha.uol.com.br/

 

FOTO DE CAPA: 

Cena do filme “Alzheimer na Periferia”, que conta a história de cinco famílias que cuidam de portadores da doença – Reprodução

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