Partilhamos um artigo dos nossos parceiros do portal LONGEVINEWS sobre i idadismo nos programas dos candidatos às prefeituras nas eleições 2020.
Uma leitura que pode ajudar à reflexão dos portugueses, tendo como foco as eleições autárquicas que se realizarão em 2021.
No dia 15 de novembro, quando 148 milhões de eleitores estavam aptos a votar nas eleições municipais, o Brasil somava 165 mil vítimas fatais de Covid-19, sendo cerca de 70% dos óbitos entre maiores de 60 anos. Apesar do trágico cenário para a população idosa no país, que a pandemia apenas confirmou, os programas de governo dos candidatos e candidatas às prefeituras foram em sua grande maioria, com poucas exceções, superficiais em relação ao processo de envelhecimento como um dos principais fenômenos demográficos contemporâneos, não apenas no Brasil mas em todo mundo.
Ao menos é o que mostra o levantamento feito pelo Portal Longevinews junto aos programas dos candidatos vitoriosos em primeiro turno ou que disputarão o segundo turno no próximo dia 29 de novembro, domingo, em 11 das 12 maiores cidades brasileiras, todas capitais estaduais: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Manaus, Curitiba, Recife, Goiânia, Belém e Porto Alegre. Juntas, essas 11 cidades somam 40 milhões de moradores, cerca de 20% da população brasileira e 4 vezes a população de Portugal. Terceira maior cidade brasileira, Brasília não entrou no levantamento por não ter eleições municipais, mas distritais, junto com os pleitos estaduais.
A pesquisa, feita com base nos programas registrados oficialmente no Tribunal Superior Eleitoral, mostrou que as palavras “idoso” ou “idosa” são citadas poucas vezes na maior parte dos programas de governo, geralmente relacionadas a obras ou alguma iniciativa voltada para essa população. Os desafios representados pelo processo de envelhecimento não são apontados na grande parcela desses programas. A própria palavra “envelhecimento” é citada menos ainda.
Apenas quatro programas de governo, dos candidatos eleitos em primeiro turno ou que disputarão o segundo, colocam as questões do envelhecimento como um eixo programático específico. A principal exceção é a cidade de Goiânia, onde os dois candidatos em segundo turno, Maguito Vilela (MDB/Republicanos/Patriota/PL/PTC/PMB/PCdoB ) e Vanderlan (PSD), apresentam a temática do idoso e do envelhecimento como linha programática própria. A temática aparece como linha programática específica também nos programas dos candidatos Capitão Wagner (PROS), em Fortaleza, e Manuela D´Ávila (PC do B), em Porto Alegre.
O caso das duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, capitais estaduais e duas das grandes megalópoles mundiais, é particularmente grave. A palavra “envelhecimento” não é citada em nenhum dos programas de governo dos quatro candidatos registrados oficialmente no site do TSE. Os programas citam as palavras “idoso” ou “idosa” de forma genérica, associadas a obras ou ações direcionadas a essa população.
PARTIDOS DESCONHECEM O TEMA, DIZ KALACHE
A superficialidade com que os programas de governo dos candidatos mais votados às Prefeituras das maiores cidades brasileiras tratam a questão do envelhecimento é fruto de uma “total falta de conhecimento” dos partidos e lideranças políticas em geral sobre o tema. A opinião é do gerontólogo e epidemiologista Alexandre Kalache, um dos maiores nomes sobre a temática do envelhecimento em esfera global. Presidente do International Longevity Centre Brazil (ILC-Brazil), é co-director da Age Friendly Foundation, de Boston, Estados Unidos.
“De forma geral os partidos ignoram a questão, não se cercam de consultores sobre o tema e não buscam informação sobre isso”, lamenta Kalache. Para ele, os dramas da população idosa continuam invisíveis no Brasil, “e o que é invisível é facilmente ignorado”.
Fundador do Departamento de Epidemiologia do Envelhecimento da London School of Hygiene and Tropical Medicine, o especialista entende que a política partidária reflete as consequências do idadismo ou etarismo, o preconceito ou intolerância contra os idosos, de acordo com o termo lançado pelo gerontólogo norteamericano Robert Neil Butler. “A sociedade brasileira é muito hedonista, voltada para a juventude eterna, a beleza eterna. Enquanto isso, a maioria da população chega muito mal aos 60 anos, como fruto das más condições de vida, da desigualdade que coloca lado a lado uma favela com milhares de moradores e um bairro com privilegiados”, observa.
Defensor da tese de que é preciso se preparar para o envelhecimento desde cedo, Kalache considera que o Brasil contraria os quatro pilares para um envelhecimento ativo, que ele propõe desde a época em que dirigia o Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS). “O primeiro pilar, que não é observado no Brasil, é a garantia da saúde, de boas condições de vida, mas o que temos no país é um SUS sucateado, lembrando que no governo de Michel Temer houve o congelamento por 20 anos dos gastos com saúde e educação, o que continua vigorando no governo atual”, adverte Kalache. “O governo Bolsonaro queria acabar com o SUS, que vem sendo fundamental para não termos um número ainda muito maior de vítimas da pandemia”, salienta.
O segundo pilar, o conhecimento, também não é prioridade no Brasil, protesta Kalache. “É preciso aprender, aprender e aprender, pois senão a pessoa chega obsoleta aos 40, 50 anos, ou até antes, ainda mais no mundo atual, de muita velocidade na informação. Obsoleto no conhecimento, o cidadão é considerado inviável para o mercado de trabalho, e no Brasil não há políticas para garantir o aprendizado a vida toda para as pessoas”, avalia. “O sistema educacional já começa com muitos problemas, sempre mal situado nos rankings internacionais. O resultado é que temos milhões de desempregados e jovens desalentados, que nem procuram mais emprego”, completa.
Muitas barreiras no Brasil, igualmente, no terceiro pilar defendido por Alexandre Kalache para um envelhecimento ativo, o capital social, a participação ativa. “O que temos são idosos solitários e sem oportunidades de participação. Um exemplo é o Conselho Nacional da Pessoa Idosa, que foi extinto pelo governo do presidente Bolsonaro em um de seus primeiros atos. O Conselho tinha a participação da sociedade civil, a voz da população idosa, mas na configuração atual não é nada representativo”, protesta.
O quarto pilar para o envelhecimento ativo, a segurança, também vem sendo torpedeado no Brasil, lamenta Kalache. “Temos assistido à violência contra a pessoa idosa e a todas as formas de insegurança, como no caso da recente reforma da previdência, que beneficiou pequenos grupos e não aqueles que trabalharam a vida toda”, frisa.
São várias as razões, portanto, na opinião de Alexandre Kalache, que deveriam levar os partidos políticos a estarem mais atentos ao fenômeno do envelhecimento, o que não tem sido verificado no contexto das eleições municipais de 2020. O processo de envelhecimento ocorre de forma muito rápida no Brasil, avisa o especialista, fazendo uma comparação com o que acontece no Canadá. Em 1950, a proporção de pessoas com 60 anos ou mais era de apenas 4,9% no Brasil, e já era de 11,3% no Canadá. Em 2015, chegou a 12,8% no Brasil e a 25,3% no Canadá. As projeções para 2050 são de que o Brasil terá 30,5% de sua população com 60 anos ou mais, enquanto no Canadá será de 30,1%. “De forma geral os candidatos ocultam o tema, não querem falar de envelhecimento, e isso é não pensar o hoje e o futuro”, conclui Alexandre Kalache.
PARA ROMANO, OMISSÃO TEM CAUSA CULTURAL
Para o filósofo Roberto Romano, professor aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, não causa estranheza a superficialidade com que os programas dos candidatos às Prefeituras tratam a temática do envelhecimento. Na sua opinião, essa posição tem causas profundas, enraizadas na cultura moderna e contemporânea. “Desde o século 18 , foram introduzidas na sociedade mundial técnicas de rapidez cada vez maior nas comunicações, na vida humana. Sobretudo na sociedade contemporânea, tudo tem que ser rápido, é preciso viver para o momento, para o próximo segundo, e com isso o tempo biológico se torna um inimigo para quem vive nas grandes urbes. Envelhecer se tornou não apenas algo ruim, mas algo que deve ser evitado, e não algo que faz parte de todo ciclo vital”, analisa Romano, autor de livros como “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).
A velhice se tornou um estorvo, algo a ser escondido, escamoteado, diz o filósofo. O preconceito contra os idosos fica evidente no discurso de muitos economistas, ele alerta, citando por exemplo declarações, que se tornaram emblemáticas, da ex-diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, para quem “os idosos vivem demasiado e isso é um risco para a economia global”. “Esse discurso esteve presente na reforma da previdência. Muitos falaram que era egoísmo dos idosos quererem uma boa aposentadoria, se esquecendo de que eles contribuíram a vida toda para a previdência”, lembra ele.
Algumas obras de arte refletiram essa característica da sociedade moderna e contemporânea, de considerar o envelhecimento como algo a ser evitado, postergado, continua Roberto Romano. Ele cita o romance “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, publicado inicialmente como folhetim em 1890 e como livro no ano seguinte, e no qual o protagonista manifesta o desejo de vender a alma para continuar jovem, enquanto o seu retrato envelhece. Outra obra citada por Romano é “Morte em Veneza”, romance de Thomas Mann, de 1912, levado ao cinema em 1971 pelo italiano Luchino Visconti. A obra relata a paixão do velho compositor Gustav Von Aschenbach pela juventude e beleza de Tadzio, nos labirintos de Veneza.
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