Pandemia sequestrou o trabalho doloroso, mas necessário, de luto e renovação
Caímos num abismo de perplexidade frente a uma ameaça que nos sujeita de forma inequívoca ao mistério de algo ainda a ser desvelado pela ciência, que prossegue ávida na sua busca, mostrando-nos avanços que desafiam e superam o tempo de espera.
Enquanto isso, a negação, o descaso, o escárnio, a corrupção de poderes públicos nos recusam expectativas de proteção contra a estranha doença, sequestrando nosso direito a um trabalho de luto no contexto sociocultural em que fomos gestados.
Na ausência de reconciliações e despedidas, choramos as mortes dos nossos queridos sem a nossa presença, nosso olhar, nossos afagos. O que fazer com a supressão dos rituais de sepultamento que celebram os mortos e ajudam a elaborar as perdas dos vivos? Somos subtraídos da presença que nos proporciona reconhecer o outro na sua morte e a nós em nossas perdas.
Impedidos de acompanhar nossos queridos em sua morte, resta-nos a angústia no vazio, carentes de forças que nos tornem capazes de ainda fazer um luto, sempre doloroso sim, mas, ao fim, renovador, propulsor de vida transformada, que proclama a proteção da nossa alma ferida e anuncia a saudade que merecemos.
Os estudiosos alertam para as possibilidades iminentes de luto patológico, aquele que assim se torna pela interdição do processo do luto provável de cada um de nós, a que todos temos direito.
Contudo, a glória de Tânatos não impede as astúcias de Eros: se não podemos adentrar os hospitais para estarmos juntos aos nossos, os profissionais da saúde alçam voos incríveis em sua presença e prática, mascarados com os equipamentos de proteção, superando indesculpáveis falhas e faltas nos serviços, na ausência de um tratamento eficaz, e ali permanecem.
Fazem de cada paciente um familiar, um amigo, um ser humano carente de cuidado e proteção, esse mesmo que é uma ameaça à saúde e à própria vida do profissional.
Com o pranto truncado como um grito sufocante, sofremos a perda de nossos entes queridos. Sofremos com medo e ameaça de ficarmos doentes. Sofremos com o isolamento social, dupla face em proteção e segregação e com o desprezo debochado dos que saem e se aglomeram pelas ruas, praias e praças. Sofremos com a ausência de perspectivas favoráveis à esperança.
Difícil saber lidar com tantas perdas e dúvidas, tantas dores não cicatrizadas, talvez jamais tenhamos vivido tamanha perplexidade.
Quem sabe consigamos juntos buscar alguma resiliência que, desconfiada, se escondeu lá no mais íntimo de nós, e ela volte a nos ensinar a caminhar nestas tortuosas trilhas de interdição e morte para, enfim, nos fazer alcançar uma superação num luto possível?
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